Bianca Damasceno
Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituição: BSDH Organização e Comunicação de Ideias
Email: bianca.bsdh@gmail.com
RESUMO EXPANDIDO:
Hannah Arendt foi uma pensadora capaz de analisar a moralidade de sua época por meio de um criterioso e arqueado exame, que abarcou tanto o singular quanto o coletivo. Nada lhe passou despercebido no campo dos negócios humanos. Essa agudeza de espírito fez de Arendt a filósofa da mundanidade, por excelência. Com ela, filosofia e política foram contempladas de modo raro e excepcional. Arendt compreendeu a polissemia do termo “mundo” e fez ver, principalmente, que é no entre, caracteristicamente humano, que cada singularidade se revela. Ou seja, é na pluralidade que cada ser único revela o seu quem, fazendo aparecer a sua diferença. Nesse sentido, do mesmo modo que se sentiu intrigada com a conduta abstinente de alguns membros da sociedade alemã diante da ignomínia nazista, ela também se ateve à corajosa atitude moral dos dinamarqueses frente ao massacre contra o povo judeu. Segundo ela, na obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999), os cidadãos desse país mostraram o quanto se é capaz de distinguir certo e errado, guiando-se “apenas pelos próprios juízos e liberdade”, quando não há mais regras que possam conformar os casos particulares com os quais a sociedade tem que se defrontar em certos cenários, como aquele da Segunda Guerra. Diante da ausência de normas para o inaudito, os dinamarqueses ajuizaram a sua atuação pelo argumento moral socrático, arriscando-se sofrerem o mal a ter que cometê-lo ou serem dele covardemente cúmplices. O governo e toda a comunidade dinamarquesa se uniram pelo que seria inimaginável diante de adversário tão superior em termos de violência. Mas eles fizeram, salvando a grande maioria dos judeus habitantes no país.
Para começar, lembremos que a Dinamarca, ainda que invadida pelos alemães desde abril de 1940, esteve livre de movimentos fascistas ou nazistas de grande expressão e, consequentemente, sem colaboradores atuantes do regime. Isso permitiu que se mantivesse como Estado neutro até 1943, momento em que a ofensiva alemã se intensificou e eles se posicionaram de modo surpreendente. “Quando os alemães os abordaram, bastante cautelosamente, quanto à introdução do emblema amarelo[1] [o emblema amarelo (ou estrela de Davi), foi usado como um estigma da exclusão dos judeus da sociedade, um distintivo obrigatório na Alemanha nazista.], eles simplesmente disseram que o rei seria o primeiro a usá-lo e (…) que medidas antijudaicas provocariam imensa renúncia.” (ARENDT, 1999, p. 190). Hannah Arendt chama a atenção para o fato de os alemães não conseguirem determinar quem eram os dinamarqueses nativos de origem judaica – cerca de 6.400 – e os 1.400 judeus alemães refugiados. Estes haviam buscado asilo antes da guerra e, agora, eram considerados apátridas pelo governo alemão. Essa postura dinamarquesa confundia os nazistas que achavam “ilógico” a proteção de pessoas a quem antes o país tinha recusado naturalização e permissão para trabalho. Contudo, o cenário era distinto, a humanidade de cada humano estava em jogo, e a Dinamarca entendeu isso. Nesse sentido, respondeu aos alemães que se os refugiados apátridas não eram mais cidadãos alemães, não poderiam ser reivindicados sem o consentimento dinamarquês. Tal posição atrapalhou a burocracia do assassinato, adiando as operações nazistas até o outono (Cf. ARENDT, 1999, p. 190).
Em agosto de 1943, Heinrich Himmler, insatisfeito com o atraso na resolução da “questão judaica” na Dinamarca, exigiu providências. Ele percebia que os próprios funcionários alemães lá atuantes já não eram os mesmos, especialmente Werner Best, da Gestapo, em quem os nazistas não podiam mais confiar. Foi nesse momento que os dinamarqueses se guiaram por seus “próprios juízos” diante de situação tão particular. Na noite de primeiro de outubro, com a missão de capturar e mandar os judeus para o campo de Theresienstadt, Best comunicou aos nazistas que teriam que bater às portas e não invadirem os lares, sob pena de terem reação da polícia dinamarquesa, caso não cumprissem essa orientação. Em decorrência disso, só conseguiram deter os judeus que abriram as portas espontaneamente; aqueles que não foram às sinagogas dias antes, onde o plano de captura havia sido largamente difundido na comemoração do Ano Novo. Tal notícia partiu de funcionários governamentais dinamarqueses, que vazaram o projeto para os líderes da comunidade judaica, através de um agente de transporte alemão, George F. Duckwitz. Os judeus tiveram tempo de abandonar suas casas e encontrar refúgio junto à população dinamarquesa, desde o apoio do rei até o cidadão comum. Por conta dessa atitude, somente 477, das 7.800 pessoas em risco, foram capturadas. Os detidos e enviados a Theresienstadt, velhos e pobres que não receberam a notícia a tempo ou não entenderam a mensagem, foram cercados de privilégios no gueto, uma vez que cidadãos e instituições dinamarquesas estavam vigilantes e ‘faziam muito barulho’ em relação a eles. Dos capturados, 48 vieram a morrer (Cf. ARENDT, 1999, p. 190), deixando claro um movimento jamais imaginado de sabotagem às ordens de Berlim. Nas palavras de Arendt, “é o único caso que conhecemos em que os nazistas encontraram resistência nativa declarada” (idem, p. 193). Para a filósofa, as autoridades alemãs na Dinamarca foram contagiadas, política e psicologicamente, a ponto de mudarem de ideia, passando a não naturalizar o aniquilamento de todo um povo. “Quando encontraram resistência baseada em princípios, sua ‘dureza’ se derreteu como manteiga ao sol, e eles foram capazes até mesmo de demonstrar um tímido começo de coragem genuína”. (idem, p. 194).
Eis uma prova do que Hannah Arendt entende por ação e discurso orquestrados. Sabemos o valor desses conceitos em sua obra. O verbo agir [archein, do grego; agere; do latim], remete a ‘começar’; ‘imprimir movimento a alguma coisa’. Dessa forma, só pela ação, na nossa condição de natalidade, é possível nos iniciarmos no mundo, a cada vez, e fazer com que o mundo também se (re)inicie (Cf. ARENDT, 2017, p. 219-220). Como atores políticos, somos impelidos a inaugurar sempre algo improvável e inesperado, revelando a unicidade de nosso Quem na pluralidade, ao agirmos e discursarmos. Ou seja, a “paradoxal pluralidade de seres únicos” (idem, p. 218) que somos, pelas correlações entre “ação e início”-“discurso e revelação”, é o que nos posiciona, verdadeiramente, como humanidade e, consequentemente, como mundanidade. As noções de “estar-com”, “entre” e “junto a”, que compõem a teia relacional que se arma onde quer que vivamos agrupados, fazem-se, no mais alto grau, o próprio conceito de “mundo”, em Hannah Arendt (idem, p. 227). Foi isso que fez com que ela olhasse com tanta admiração para a ação discursiva do povo dinamarquês. Mas como conseguiram? Utilizando-se de algo tão caro à Arendt quanto à ação discursiva: a capacidade de pensar e, portanto, de questionar o significado de todas as experiências vividas, através do auto diálogo silencioso e amigável do dois-em-um socrático (Cf. ARENDT, 2018, p. 62). O exercício do pensamento, por meio da faculdade do juízo (idem, p. 154), nos permite promover julgamentos de situações reais, concretas, exclusivas e excepcionais, subordinando a universalidade dos códigos à particularidade de cada interpelação da vida. Ou seja, colocando-nos no lugar dos outros, alargando nossa consciência de mundo e discernindo criticamente o que precisa ser feito, nossa atuação no mundo, e no caso a caso, revela-se potencialmente humana.
Contudo, parece que o nosso pensar segue cada vez mais ensombrecido e o nosso julgar cada vez mais apático. A expressão “mundo-deserto” cunhada por Hannah Arendt em 1955[2], quando concluía o seu curso A História da Teoria Política, na Universidade de Berkeley (Califórnia), expande aceleradamente diante de nossos olhos, caracterizando a situação de completa “desmundanização” em que nos encontramos. Hannah pressentia… Ela apontou em A Condição Humana [1958], o quanto passamos a desqualificar o senso comum – o sexto e “mais elevado de todos os sentidos” (ARENDT, 2017, p. 340), capaz de promover pertença a um mesmo espaço histórico ou a um mesmo mundo compartilhado – e o quanto passamos a confiar apenas na nossa própria mente tão alienada do mundo (Cf. idem, p. 353). Ela avisou que quando nos desligássemos do mundo como ESPAÇO COMPARTILHADO do ENTRE, passaríamos, de uma vez, a viver no mundo-deserto. O comportamentalismo, tão valorizado na psicologia moderna, e os estilhaços deixados pelos movimentos totalitários que reacendem a cada expansão do extremismo, em vários cantos do planeta, não nos deixam dúvida do quanto Hannah Arendt tinha razão. De um lado, estamos sempre ocupados em ‘consertar’ algo de errado em nós (e não fora de nós), buscando desesperadamente a tão aclamada resiliência que, nada mais é, que a adaptação às condições de “ausência-de-mundo” que nos faz aceitar o deserto como a nossa ‘casa’. Por outro lado, temos o personalismo de líderes governamentais, que irrompem como ‘tempestades de areia’, devastando tudo ao redor. O ‘mundo’ imposto pelo totalitarismo, caracteriza-se pelo oposto de qualquer ideia de durabilidade, permanência e, especialmente, coexistência plural. O que há, na verdade, é uma interdição no que entendemos por ‘realidade’ por meio de um ‘mundo fictício’ que, ao emergir, empreende a exacerbação do ódio, da destruição e do terror, assolando-nos e impondo-nos às condições do deserto (CF. ARENDT, 2020, p. 266-269).
Gaza, Ucrânia, Irã, Israel, Sudão, Líbano, Síria, Afeganistão, República Democrática do Congo, Haiti, Iêmen, Chifre da África, Venezuela, Nicarágua, El Salvador etc. são provas cabais do quanto a nossa responsabilidade moral pelo mundo vem fracassando. Vamos ‘tocando em frente’ e vivendo totalmente descolados da realidade. Para todo lado, ficções violentas permitem que pressupostos falsos, fabricados para atender a interesses autoritários, se tornem fatos incontestes, fazendo com que “a diferença entre a verdade e a mentira possa deixar de ser objetiva e passe a ser apenas questão de poder e repetição infinita” (ARENDT, 2012, p. 466), articulados em forma de ideologias e delírios sem qualquer compromisso de verificação. Mas é bom que nos apressemos e não nos enganemos: enquanto tivermos humanos maltratados, humilhados, excluídos e massacrados… estaremos todos, cada vez mais, na posição de párias, refugiados, desprovidos de território e destituídos de lar. O alerta é este: o descuido de tudo o que diz respeito ao ‘bem comum’ leva à produção de um “mundo sem mundo”. A tarefa da coexistência e do interesse por aquilo que é direito de todos e todas segue mais do que nunca na ordem do dia diante do desterro e da desmundanização do mundo. Para esta tarefa, importa que atuemos em prol de nossa pluralidade contra a expansão do deserto. Vale, então, voltarmos ao início e lembrarmos da atitude do povo dinamarquês diante da ameaça nazista. Uma lição sobre os conceitos arendtianos de ação discursiva e capacidade de julgamento. Acima de tudo, uma confirmação de que Política é, por excelência, o “cuidado com o mundo” (ARENDT, 2018, p. 35). Por falar em cuidado, a Dinamarca continua seguindo por caminhos sensatos. No Ranking Mundial da Felicidade da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado anualmente pelo Centro de Pesquisa de Bem-Estar da Universidade de Oxford, ela só perde para a Finlândia em termos de bem-estar social, nível de renda, saúde, liberdade, generosidade e ausência de corrupção (Cf. G1-MUNDO, 20/03/2025). Isso alimenta a nossa esperança de que, quando se tem responsabilidade moral pelo mundo, é possível lutar por espaços de convivência na cena pública em que nenhum ser humano seja reduzido a supérfluo. Hannah Arendt questionou até o fim de sua vida o que estamos fazendo com o mundo. Hoje, mais do que nunca, essa questão nos serve de legado e causa em prol da paz, da democracia e dos modelos republicanos tão ameaçados em todo o planeta.
Palavras-chave: Moralidade; Mundo; Política; Pluralidade; Singularidade.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Denise Bottmann. Posfácio Celso Lafer. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
______. A promessa da política. Organização e introdução Jerome Kohn. Tradução de Pedro Jorgensen. 7. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2020.
______. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
______. O que é política? Editoria Ursula Ludz. Tradução de Reinaldo Guarany. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.
______. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
G1 MUNDO. Dia Internacional da Felicidade: veja quais são os 50 países mais bem colocados na lista da ONU. Redação G1. 20/03/2025. Disponível em https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/03/20/ranking-da-felicidade-veja-quais-sao-os-50-paises-mais-bem-colocados-na-lista-da-onu.ghtml. Consultado em 13/06/2025.
[1] O emblema amarelo (ou estrela de Davi), foi usado como um estigma da exclusão dos judeus da sociedade, um distintivo obrigatório na Alemanha nazista.
[2] Consta no Epílogo de A Promessa da Política, p. 266-269 (2020 [2005]). Também pode ser encontrado como Um possível capítulo final: “De Deserto a Oásis”, no livro O que é Política? (Tópico 5 da Segunda Parte – Comentário da Editora, p. 177-183).