Bianca Damasceno
Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituição: BSDH Organização e Comunicação de Ideias
Email: bianca.bsdh@gmail.com
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RESUMO EXPANDIDO:
Quem passa pelo bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, pode ser testemunha da melhor expressão da boemia carioca. Ali se encontra o primeiro monumento interativo da cidade. É uma homenagem ao cantor e compositor, Noel Rosa (1910-1937) – um dos maiores artistas da música popular brasileira. Pelas mãos do paraibano, Joás dos Passos, o “Poeta da Vila” “brotou” como estátua de bronze no Boulevard 28 de Setembro, em 1996, eternizando Conversa de Botequim, música que inspira a ‘cena’ em que Noel aparece sentado à mesa de um bar, atendido por um garçom. A obra de arte também é composta por uma cadeira vazia, que convida o pedestre a sentar-se ao lado do artista. Apesar de sua beleza, vultuosidade e incentivo à convivência, a escultura não tem contado muito com a reciprocidade dos humanos, que vêm submetendo-a a uma série de depredações desde o ano de 2012, tendo a sua última remoção para reparos em julho de 2025 (HENRIQUE, 2025). Foram, aproximadamente, cinco ações de vandalismo e mais de dez furtos desde a entrada no século XXI. Tais destruições, mesmo com instalação de câmeras de monitoramento, vem se repetindo e fazendo com que braços, parte dos pés, cadeira, copo e garçom sejam substituídos pelo “nada”, deixando uma sensação de que algo não anda bem com o nosso espírito civilizatório.
Tomando esse fenômeno como ponto de partida, as ideias que se apresentam a seguir, centralizam-se em uma das palavras mais corriqueiras do nosso vocabulário. Palavra veiculada sem peso ou sobrecarga de sentido, de modo geral. Contudo, diferentemente disso, a filosofia sempre dedicou a ela análise apurada, como podemos ver em Platão, Edmund Husserl e Martin Heidegger. Trata-se da palavra MUNDO. Seja como totalidade, firmamento, planeta, universo ou população; seja para designar campos específicos – como mundo digital ou mundo corporativo; seja para indicar períodos históricos – mundo antigo ou mundo moderno; seja para situar recortes geográficos – velho mundo ou novo mundo, esse é um conceito que fala sobre nós. Fala sobre nosso presente, mas também sobre o que fizemos até aqui e para onde estamos indo. Pensar o significado do que seja mundo, é, portanto, exercício filosófico que nos chama sempre à responsabilidade reflexiva. Nesse sentido, tanto a teórica política alemã, Hannah Arendt (1906-1975), quanto o filósofo e ensaísta sul-coreano, Byung-Chul Han (1959- ) têm muito a nos dizer a respeito, especialmente diante de cenários sombrios e incógnitos que vem nos desafiando desde o século XX. O diálogo aqui proposto entre eles nos permite condições de pensar o nosso presente e nosso futuro próximo, com urgência e criticidade.
Comecemos por Hannah Arendt. Considerada a “filósofa do mundo”, por excelência, foi uma dentre os que mais se dedicaram ao aprofundamento do termo, uma vez que seu pensamento sempre se voltou para os acontecimentos que ela presenciou, especialmente na sua experiência de judia alemã sobrevivente do nazismo. Em Arendt, encontramos um olhar polissêmico para o mundo, que, a princípio e dentre tantas vertentes, faz-se “artifício humano por nós edificado” (2017, p. 169). Ou seja, a realidade que se constitui artificialmente sobre a natureza, pelas vias humanas, tornando-se totalidade objetiva, doadora de solidez, durabilidade e mediação da vida coletiva por meio de utensílios, edificações, leis, instituições, artes, língua e cultura. Relacionado a isso, temos o mundo como lar e morada imortal para nós, mortais. O lócus histórico transcendente de nossa jornada na Terra (Cf. ARENDT, 2017, p. 216), antecedendo-nos, ao nascermos, e sucedendo-nos, ao morrermos (Idem, 2018, p. 37). Diferentemente do sentido natural do termo ‘Terra’, para Arendt – a partir da influência recebida de Heidegger (1889-1976) – o conceito de ‘Mundo’ “não designa um estado de coisas no interior do qual nos descobrimos inseridos como um ser simplesmente dado, mas o horizonte transcendental a partir do qual o ser conquista o seu desvelamento ou o seu aí” (ALVES NETO apud PASSOS, 2020, p. 82). Dessa forma, sendo espaço de desvelamento para cada humano, o mundo se faz, acima de tudo, coexistência e convivência. É a pluralidade das diferenças e a manifestação da singularidade de seres únicos que precisam de ‘teia relacional’ para viver (Cf. ARENDT, 2017. Tópicos 24 e 25 do Cap 5). Ou seja, é na pluralidade que cada ser único revela o seu quem, fazendo aparecer a sua diferença. A perspectiva arendtiana nos permite entender, então, que “o mundo e as pessoas que nele habitam não são a mesma coisa. O mundo está entre as pessoas” (Idem, 2008, p. 11). Com isso, Arendt nos leva à compreensão de que somos do mundo, e não apenas estamos nele (Idem, 2018, p. 36), e que, portanto, o mundo não se reduz a nós, embora seja condição para nossa existência. Dito de outra forma, só existe mundo porque existem humanos e só é possível sermos humanos porque somos mundanos.
A essa altura da reflexão, chegamos a uma pergunta inevitável: o que nos aconteceria, por conseguinte, se o mundo nos fosse tirado? Com base na compreensão arendtiana, perderíamos mundanidade; logo, deixaríamos de ser humanos. Hannah Arendt, especialmente a partir do que testemunhou na experiência do holocausto e da compreensão de como operavam os regimes totalitários, nos alertou muitas vezes para esse perigo. Quando a era moderna iniciou o processo de total alienação do mundo (Cf. ARENDT, 2017, p. 307-318), passamos a marchar na direção da desmundanização ou da desertificação do mundo. Significa dizer que a indiferença pelo bem comum e pelos assuntos públicos nos levaria a viver num mundo-deserto (Idem, 2020, p. 266-269), desligados e desdenhosos da edificação humana na Terra, geradora de estabilidade, solidez, institucionalidade, cultura, e, portanto, ‘espaço compartilhado do entre’ (Idem, 2008, p. 11). Nessa condição, já estaríamos tão adaptados às condições de ausência-de-mundo que aceitaríamos o deserto como a nossa ‘casa’, exacerbando nosso individualismo, rasgando códigos civilizatórios e perdendo o compromisso com a realidade. Eis é a meta de todo regime totalitário. A extinção total da facticidade, da mediação e do vínculo… possíveis, apenas, pelas vias da coexistência ‘plural’ e do apreço pelo que é ‘comum’. O totalitarismo precisa de uma ficção que substitua o real e o efetivo, interditando-os. Só assim consegue exacerbar o caos, o ódio e o terror, fontes das condições desérticas. É ou não o que estamos observando se alastrar, de modo crescente, na atualidade? Movimentos autoritários que, injetando delírios em lugar de fatos incontestes, fazem com que “a diferença entre a verdade e a mentira possa deixar de ser objetiva e passe a ser apenas questão de poder e repetição infinita” (Idem, 2012, p. 466).
O filósofo sul coreano, Byung-Chul Han, confirma e expande o alerta arendtiano quando identifica a desertificação do mundo nos dias de hoje pelas vias do digital, promovida pelo atual sistema psicopolítico neoliberal do século XXI. Han dialoga com Arendt, concordando que cabe às coisas a tarefa de atribuir estabilidade e sustentação ao humano, sendo, portanto, para nós polos de repouso da vida. Contudo, o filósofo afirma que “hoje nos encontramos em uma transição da era das coisas para a era das não-coisas” (2022b, p. 12). Isso porque a ordem digital vem descoisificando o mundo ao informatizá-lo (2022b, p. 11) e, portanto, substituindo a relação que temos com as ‘coisas’ pela relação que temos com as ‘informações’ a respeito delas. Por conta disso, diz Han, “o mundo está se tornando cada vez mais incompreensível, nublado e fantasmagórico. Nada é palpável e tangível” (idem, p. 12) uma vez que o foco deixa de ser a reificação e passa a ser a informação, perdendo-se unidade estável de mediação. O perigo dessa perda está no fato de que não há repouso na informação; falta-lhe a consistência do ser (idem, p. 13). Dessa forma, se vamos deixando de ter o contato com as ‘coisas’, vamos nos embrenhando no universo digital: fetichistas de dados, manipulados pela incitação à surpresa, sem a capacidade de aprofundamento. Byung-Chul Han deixa claro que o perecimento da realidade física destrói a ‘esfera das coisas’ e inaugura a infosfera ou o mundo das não-coisas, em que ‘comunicação’ e ‘informação’ nos dominam e diluem, de forma progressiva, o contato com o real.
Para Han, estamos perdendo, cada vez mais, a história e a memória, importando-nos apenas com meros armazenamentos de dados e sua produção contínua de estímulos. Isso, além de nos distanciar da preocupação com a verdade factual, nos arranca da relação com tudo o que seja ritualístico, discreto, vagaroso ou contemplativo. Em outros termos, com as informações passando a ser as não-coisas determinantes, a vida vai deixando de ter consistência ontológica e vai ganhando eficácia emancipatória. O que não deixa de ser paradoxal, já que isso se dá, segundo o filósofo, por meio de um movimento em que a própria hiperinflação de ter coisas conduz a uma indiferença, deslocando o interesse de consumo das coisas, propriamente ditas, para o consumo da informação sobre as coisas, o que nos leva a uma intoxicação “infocomunicacional”. Nas palavras de Han, “a infomania é o resultado. Todos nós nos tornamos infomaníacos. (…) A informatização do mundo transforma as coisas em infômatos, ou seja, atores do processamento de informações” (2022b, p. 14-15). Inauguramos, a partir daí, uma série de pseudorrelações, com os objetos, com a casa, com a alexa etc. “O carro fala com você, informa-o ‘espontaneamente’ sobre a condição dele (…), dá conselhos e toma decisões, é um parceiro em uma negociação abrangente sobre como viver […]” (Idem, p. 15).
Mergulhados na descontinuidade do ‘mundo’ das não-coisas, vamos deixando de ser narrativos e passando a ser, cada vez mais, aditivos. Nosso simbolismo vai se esvaindo na superficialidade imagética e digital rumo à fragmentação da vida, que passa a ser vivida à luz do toque dos dedos ou do comando de voz. Com isso, vamos colocando em risco o que mais nos superioriza em relação à inteligência artificial: a nossa dimensão afetivo-analógica; esta que nos situa como seres abertos, lançados em um mundo dis-posto e em comoção, qualificando-nos como sujeitos do pensamento (Cf. Han, 2022-b, p. 71-73). Como nos lembra Han, diferente de nós, “a inteligência artificial é apática, quer dizer, sem pathos, sem paixão. Ela [apenas] calcula (…), é sem mundo” (Idem, p.77-78, chaves nossas). Portanto, na esfera das não-coisas ditada pela ordem tecnonumérica – sem história e sem memória -, vamos enveredando por um cotidiano vigiado e controlado algoritmicamente numa espécie de ‘prisão inteligente’, em que “as pessoas perdem cada vez mais seu poder de ação, sua autonomia” (Idem, p. 18-20). Inclui-se, aqui também, a perda do outro, que, para Han, é um evento dramático. “O outro como mistério, o outro como olhar, o outro como voz… desaparece. O desaparecimento do outro também afeta o mundo das coisas” (2022b, p. 97).
A infosfera, denunciada por Byung-Chul Han é, de algum modo, a realidade profetizada por Hannah Arendt sobre a desertificação do mundo. Han reafirma Arendt: perder o mundo das coisas é perder o mundo como tal. Ambos os filósofos nos fazem entender que priorizar o mundo enquanto ‘realidade constituída’ e ‘espaço intermediário’ é, dentro do contexto aqui abordado, não abrir mão do protagonismo humano diante da inteligência artificial. Se enveredamos pela infosfera sem debatê-la abdicamos de nossa vontade livre e racional diante da manipulação dos algoritmos como arma de proporções ainda incalculáveis. Nesse sentido, a seriedade com que Hannah Arendt nos apresenta a ideia do que seja mundo deixa clara a importância de focarmos no que Byung-Chul Han está denunciando como perda, tanto das coisas propriamente ditas, quanto da alteridade que dá às coisas os sentidos que elas têm, no seio da cotidianidade. O mundo como solo cultivado pelo e para o nosso bem viver em coletividade significa a garantia da manutenção de nossa condição humana, enquanto convivência e laço. Sem a mediação das coisas objetivas e sem a interpelação do outro, deixamos de ver o mundo como lar, como domicílio e passamos a ser habitantes do não-lugar onde regras, mecanismos de arbitragem, limites, respeito e deferência à pessoa humana podem facilmente se esfacelar. Descoisificando o mundo, estamos perdendo não somente o mundo propriamente dito, mas perdendo a nossa própria humanidade.
Que tipo de humano restará? Qual o sentido da substituição do mundo real pela virtualidade das coisas nessa estratégia neoliberal? Para Han, a estratégia visa o fim do que, em Hannah Arendt, significa, por excelência, o cuidado com o mundo: a Política. Han denuncia que se busca, cada vez mais, o atingimento de uma midiocracia que, muitas vezes, trabalha contra a democracia (Cf. HAN, 2022-a, p. 25-27). “Na midiocracia, também a política se submete à lógica das massas. O entretenimento determina a mediação de conteúdos políticos e deteriora a racionalidade” (Idem, p. 28), tornando-nos incapazes de diferenciar o que é realidade de ficção. O “infoentretenimento” que começa em telas e monitores vai centrifugando a nossa esfera pública, fazendo com que o tecido social democrático se decomponha sem objeção. Nesse modo de governar em que o infoentretenimento midiático digital é usado como a maior das armas – infocracia -, o tempo do pensamento não existe. “Na sociedade da informação, simplesmente não temos tempo para a ação racional. A coação da comunicação acelerada nos priva da racionalidade” (HAN, 2022-a, p. 36). No centro desse tipo de abordagem, está o apelo à emoção em detrimento do que procede à razão. “Hoje, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. A psicopolítica neoliberal se ocupa da emoção para influenciar ações sobre esse nível pré-reflexivo”. (Idem, 2018, p. 66-68). Assim, com a infantilização das cabeças, com a perda do tempo para o pensamento, o apelo às emoções e o controle de nossos dados pessoais, fica fácil para o capitalismo da era digital diluir qualquer ‘coisa’ que lhe sirva de entrave; até o próprio ‘mundo’.
Ouçamos, então, o alerta de Arendt e Han, que nos chega como o convite para nos sentarmos à mesa com o “Poeta da Vila”, para uma Conversa de Botequim: “Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa/Uma boa média que não seja requentada/Um pão bem quente com manteiga à beça/Um guardanapo/E um copo d’água bem gelada”. O que seria de nós sem um boteco com uma boa média, um pão bem quente com manteiga à beça, um guardanapo e um copo d’água bem gelada, cheio de gente ao redor? São as coisas que fazem com que o mundo se dê, garantindo-nos partilha, senso de convivência, mediação e alguma segurança… Mesmo quando nos roubam os copos, as garrafas, os pés, os braços… Mesmo quando o niilismo nos toma em partes. Portanto, cuidemos do mundo-das-coisas antes que o desprezo por tudo o que diz respeito ao ‘bem comum’ leve à produção de um mundo sem mundo. Para esta tarefa, importa que atuemos contra a expansão do deserto.
Palavras-chave: Desertificação; Desmundanização; Infocracia; Midiocracia; Mundo.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Denise Bottmann. Posfácio Celso Lafer. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
______. A promessa da política. Organização e introdução Jerome Kohn. Tradução de Pedro Jorgensen. 7. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2020.
______. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Traducao de Cesar Augusto
- de Almeida, Antonio Abranches e Helena Franco Martins. 7. ed. Rio de
Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2018.
______. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann, posfácio de Celso Lafer. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022-a.
______. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Tradução de Rafael Rodrigues Garcia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022-b.
______. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné, 2018. (Coleção Aut Aut, 1)
HENRIQUE, Victória. Estátua de Noel Rosa será retirada para conserto após vandalismo em Vila Isabel. Bom dia, Rio/G1. 22/07/2025 11h27. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/07/22/estatua-de-noel-rosa-sera-retirada-para-conserto-apos-vandalismo-em-vila-isabel.ghtml. Consultado em 06/09/2025.
PASSOS, Fábio A. O conceito de mundo em Hannah Arendt: para uma nova filosofia política. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2020.