Publicado em: Revista Filosofia UIS, vol. 24 nº1 (2025), enero – junio, e ISSN 2145-8529
“Para que” amor? Erotismo como resposta à violência na obra de Byung-Chul Han
“What” is Love for? Eroticism as a Response to Violence in the Work of Byung-Chul Han
¿Amor “para qué”? El erotismo como respuesta a la violencia en la obra de Byung-Chul Han
Bianca dos Santos Damasceno iD; Alexandre Marques Cabral iD
bianca.bsdh@gmail.com; alxcbrl@yahoo.com.br
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
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Artículo de reflexión derivado de investigación
Recepción: 2024/04/12– Aprobación: 2024/07/04
eISSN: 2145-8529
https://doi.org/10.18273/revfil.v24n1-2025002
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Resumo: o artigo analisa o erotismo como via de resistência à psicopolítica, sistema hegemônico de nosso tempo, segundo o filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han. Esse modelo de organização social escraviza os indivíduos utilizando-se de um comando positivado dos comportamentos. Com isso, supera a tirania negativada do poder disciplinar vigente no século passado. O neoliberalismo do século XXI ordena, por estímulos afirmativos, que cada indivíduo se empreenda como um ‘eu-projeto’ por meio de três formas de controle psíquico-emocional que, na verdade, fazem-se modos violentos de poder: a ditadura da transparência; o inferno do igual; a coação da liberdade opressora. Para o filósofo, eros é uma importante força transgressora capaz de interditar a truculência dessas violações, fazendo com que o ‘sujeito-nós’, eroticamente retomado, reacenda na sociedade a capacidade do laço e da mutualidade por meio do êxodo de si rumo ao outro. Contudo, o artigo também indaga até que ponto tal teoria consegue dar resposta à violência negativada do capitalismo colonial, sinônimo de assolamento e destruição da alteridade, ainda tão arraigado e atuante no contemporâneo.
Palavras-chave: eros; psicopolítica; violência; positividade; negatividade.
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Información sobre los autores: Bianca dos Santos Damasceno é doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é sócia diretora da BSDH Organização e Comunicação de Ideias, no Rio de Janeiro. Alexandre Marques Cabral é doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
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Forma de referenciar (APA): Damasceno, B. y Cabral, A. M. (2025). “Para que” amor? Erotismo como resposta à violência na obra de Byung-Chul Han. Revista Filosofía UIS, 24(1), 29-53. https://doi.org/10.18273/revfil.v24n1-2025002
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Abstract: the article analyzes eroticism as a means of resistance to psychopolitics, the hegemonic system of our time, according to the South Korean philosopher, Byung-Chul Han. This model of social organization enslaves individuals using a positive command of behavior. Therefore overcomes the negative tyranny of disciplinary power in force in the past century. The neoliberalism of the 21st century orders, through affirmative stimuli, that each individual undertakes himself as a ‘project self’ using three forms of psychic-emotional control that, in fact, become violent modes of power: the dictatorship of transparency; the hell of the equal; the coercion of oppressive freedom. For the philosopher, eros is an important transgressive force capable of interdicting the brutality of these violations, causing the ‘us-subject’, erotically retaken, to rekindle in society the capacity of bonding and mutuality through the exodus of oneself towards the other. However, the article also asks to what extent this theory can respond to the negative violence of colonial capitalism, synonymous of the devastation and destruction of otherness, still so deep-rooted and active in the contemporary world.
Keywords: eros; psychopolitics; violence; positivity; negativity.
Resumen: el artículo analiza el erotismo como medio de resistencia a la psicopolítica, el sistema hegemónico de nuestro tiempo, según el filósofo surcoreano Byung-Chul Han. Este modelo de organización social esclaviza a los individuos utilizando un comando positivo de comportamiento. Con ello, supera la tiranía negativa del poder disciplinario vigente en el último siglo. El neoliberalismo del siglo XXI ordena, a través de estímulos afirmativos, que cada individuo se asuma como un ‘proyecto de yo’ a través de tres formas de control psíquico-emocional que, de hecho, se convierten en modos violentos de poder: la dictadura de la transparencia; el infierno de los iguales; la coerción de la libertad opresiva. Para el filósofo, el eros es una importante fuerza transgresora capaz de impedir la brutalidad de estas violaciones, haciendo que el ‘nosotros-sujeto’, retomado eróticamente, reavive en la sociedad la capacidad de vinculación y mutualidad a través del éxodo de uno mismo hacia el otro. Sin embargo, el artículo también se pregunta hasta qué punto esta teoría puede responder a la violencia negativa del capitalismo colonial, sinónimo de devastación y destrucción de la alteridad, todavía tan arraigada y activa en el mundo contemporáneo.
Palabras clave: eros; psicopolítica; violencia; positividad; negatividad.
[…] o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão. Este discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído não somente do poder mas também de seus mecanismos (Roland Barthes)
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.
(Bell Hooks)
1. Introdução
Que o amor seja potência de estruturação da existência, isso dificilmente alguém negaria. Que seja ele fonte decisiva de sentido direcionador da ipseidade humana e significador de suas múltiplas relações e experiências, também raramente o negaríamos (cf. Marion, 1986). Mas, se nos dissessem que se trata de uma disposição afetiva óbvia, uma vez que todos/as o conhecemos de alguma forma, isto sim se tornaria questionável. É que o que parece ser gramaticalmente um substantivo – o amor – se refere, antes de tudo, a um exercício polissêmico e, por se tratar de um exercício, se revela como verbo: amar, dinâmica que antecede e justifica o substantivo amor. Daí a sentença: no princípio, se encontra o verbo amar – e não o substantivo amor. Se assim o é, então, a polissemia desse verbo nos obriga a dizer que, no fundo, o que há são amares, formas diversas de exercitamento do verbo amar. O substantivo amor, nesse e em outros casos, é uma pálida memória de uma pluralidade inerente ao verbo que o gestou um dia. Amizade, caridade, erotismo-sexual, ternura, compaixão, pornéia-tesão, bem-querença, fraternidade, sororidade são tantas vozes e formas do verbo amar, são tantos amares, que a aparente univocidade do substantivo se mostra claramente ilusória. Disso surge o traço de inesgotabilidade-mistério do amar-amares que exercemos. Ainda assim, é possível dizer: onde o verbo amar se realiza, a existência tem de ser pensada e experimentada como coexistência, já que não há amorosidade sem exercício relacional da vida, razão pela qual a noção de alteridade, isto é, a experiência da outridade de um/a outro/a altera a ipseidade de quem ama. Em outros termos, ao amar, a condição humana vem a ser outra de si mesma porque é alterada pela alteridade em direção à qual se lançou. Essa experiência atravessa até o chamado amor próprio, como lecionou bell hooks, pois ninguém ama a si mesmo, se não se relaciona consigo como outro-de-si-mesmo (Hooks, 2020, cap. 4).
O presente artigo objetiva tematizar o verbo amar. Mas não qualquer modo de realização desse verbo. Iremos nos ater a uma de suas possibilidades, a saber, aquela que poder-se-ia chamar de messianismo erótico, que se revela em Byung-Chul Han de modo paradigmático. Por messianismo erótico, entendemos a experiência segundo a qual o erotismo, importante variação greco-ocidental do verbo amar, possui caráter salvífico-messiânico. Salva-nos de uma conformação histórico-mundana decadencial e corrosiva, como é o caso da analítica histórico-cultural de Han, que entende, como veremos, a contemporaneidade como “filha” do neoliberalismo, este compreendido como sistema político-simbólico de subjetivação das existências e de estruturação de mundo, possuindo como característica central certa violência da positividade. A positividade em questão funciona como adjetivo hegemônico a marcar a essência do pensamento, dos afetos, das práticas, do sistema de comunicação (especialmente, as redes sociais), da estética, das psicopatologias contemporâneas (burnout, TDAH e depressão, por exemplo) etc., que inviabiliza toda produção de sentido-significação que nasça do seu contrário, a negatividade. Enquanto negatividade afirmativa, ou seja, negatividade resistente e criadora a experiência erótica possuiria caráter soteriológico em meio à sociedade da positividade generalizada, a sociedade do desempenho. O que nos salta aos olhos nessa compreensão do amor-erotismo é o seu pressuposto axiológico, qual seja, aquele que entende a negatividade como possuidora de valor de libertação-resistência. Uma vez que Han pensa o erotismo atravessado pela historicidade da nossa contemporaneidade, não seria importante averiguar se a experiência da negatividade neste mundo e no próprio amor teria somente esse sentido afirmativo-soteriológico? E se a contemporaneidade (inclusive a nossa, brasileira) apresentar experiências de negatividade nos átrios das experiências amorosas que, no mínimo, relativizem as pretensões salvíficas de Han? Eis a nossa hipótese: à luz de certas experiências brasileiras e sul-americanas (o que não se esgota nesses campos topológicos), o verbo amar é funcionalizado para justificar outra negatividade, aquela que produz opressão, assolamento, morte e, por isso, a negatividade que atravessa o amor não pode se afirmar unicamente como fonte de resistência e libertação. É o caso da monogamia colonial euro-cristã, como mostrou Geni Nuñez (2023), que intoxicou a amorosidade com uma multiplicidade de formas de violência. É o caso também das hierarquias de gênero e orientações sexuais nas sociedades patriarcais capitalistas gestadas pela colonização moderna eurocentrada, que engendram modos de sujeição que se identificam justamente com aquele tipo de aberração afetiva que Paulo Freire chamou de necrofilia (cf. Freire, 2013).
O confronto de Han com outras negatividades não afirmativas compõe o que gostaríamos de chamar de crítica da razão erótica, que, por um lado, a exemplo de Kant, visa elucidar o seu campo hermenêutico e caracterizar seus limites; por outro, sob inspiração da crítica genealógica nietzschiana, almeja avaliar o valor do erotismo haniano (qual o valor deste valor) segundo sua capacidade de produzir resistência e afirmatividade em contexto onde a negatividade não se constitui como experiência redentora1. Portanto, a partir dessa Introdução, propomos enfatizar a validade do pensamento do filósofo questionando, ao mesmo tempo, até onde consegue chegar a sustentabilidade de suas pretensões. Para dar conta de tal tarefa, iremos dividir o presente trabalho em dois momentos: Byung-Chul Han e o erotismo: ‘da negatividade erótica à resistência à positividade neoliberal’ e ‘por uma crítica da razão erótica: para além de messianismos’.
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2. Byung-Chul Han e o erotismo: da negatividade erótica à resistência à positividade neoliberal
Eros é êxodo de si. Eis o sentido dado por Byung-Chul Han ao afirmar que “o eros arranca o sujeito de si mesmo e direciona-o para o outro” (Han, 2017a, p. 10). Do grego éksodos – ἐξ (ex) “fora” e ὁδός (odós) “via, caminho”, o vocábulo fala de ‘emigração’, ‘partida’ e/ou ‘passagem’ de determinado lugar para outro. No caso da abordagem de Han, significa, em outros termos, negativar a positividade de um “eu-narcísico” – cerrado, enclausurado e ensimesmado – que vem deixando de ser sujeito-nós para se tornar um eu-projeto sem restrições ou imposições externas, submetido apenas às coerções ou obrigações por ele autoimpostas e visibilizadas em seu desempenho, sua otimização e sua autossuperação contínua. Esse ‘eu-projeto’ já não precisa mais obedecer ao comando disciplinador e responsável pela domesticação pulsional, pela castração do prazer e pela vigilância opressora de corpos e espaços gerenciados pelo biopoder do século passado, como bem nos apontaram os estudos de Michel Foucault, ponto de partida Han. O nexo ‘saber-poder’ focado na dimensão do biológico dominava fazendo a gestão, a regulação e o controle acurado dos seres e da vida por meio da articulação entre o poder disciplinar (século XVII) e a biopolítica (meados do século XVIII).
O primeiro, segundo Foucault, atuava sobre o ‘corpo-máquina’ dos indivíduos, visando a disciplina; eis por que é considerado uma concepção anátomo-política do humano, ocupando-se da utilidade e do adestramento. Já a biopolítica, agia na população implantando mecanismos reguladores sobre o ‘corpo-espécie’ por meio de uma força de governança normativa (cf. Foucault, 1997). Como signo emblemático de tal organização social doutrinária estava o panóptico, projeto de autoria do jurista inglês, Jeremy Bentham, que se constituía de uma edificação em forma de anel com celas individuais vigiadas por uma torre de controle ao centro. Da torre, um guarda em posição de sentinela conseguia monitorar tudo, a todo instante, sem que ninguém pudesse vê-lo (cf. Foucault, 1999). Nesse tipo de sociedade, tinha-se uma subjetividade obediente ao discurso proibitivo e coercitivo do tu deves [dever – Sollen]. Segundo Han, ao entrarmos no século XXI, sob a égide do capitalismo neoliberal, as estratégias de controle vêm sendo sutilizadas e deslocadas da dimensão biológica, passando a agir, preponderantemente, sobre os processos psíquicos, mentais e emocionais dos indivíduos e da população. Estamos na era da psicopolítica, um modelo de organização social que escraviza pela regência positiva e afirmativa de um certo tu podes [poder – Können]2 . Por essa voz de comando, a antiga neurotização cede lugar ao empuxo, ao estímulo e à incitação: sim, tu podes tudo o que desejares! O céu é o seu limite… Nesse sentido, não se trata mais daquele ‘eu’ recalcado e mergulhado em mal-estar em prol da civilização, como nos apontou Sigmund Freud (1914) quando dizia que:
[…] o que induz o indivíduo a formar um ideal do eu, em nome do qual sua consciência atua como vigia, surge da influência crítica de seus pais…, aos quais vem a juntar-se, à medida que o tempo passa, aqueles que o educam e lhe ensinam, a inumerável e indefinível coorte de todas outras pessoas de seu ambiente – seus semelhantes – e a opinião pública. (p. 113)
O ideal do eu [Ich-ideal]3 de nosso tempo não atua mais sobre o eu-ideal [ideal-ich] para a renúncia de si. Ao contrário, “Sua majestade o bebê” (‘His majesty the baby’)4 está de volta e, como nunca, muito incensado. Como antes centro e âmago do universo, só que agora com a falsa promessa de não ser destronado, mas incentivado a se autoproclamar digno de elogios, aplausos, contínua satisfação, ininterrupto bem-estar, meritocracia e recompensas. Goze, sem parar! Um eu-ideal que faz jus ao mito de Narciso [Narkissos, de narke: “torpor”, “narcótico”, “entorpecido”, “o que faz adormecer”] (Chevalier & Gheerbrant, 1982, p. 627) e que, por isso mesmo, acaba submergido e afundado no final. Nas palavras de Byung-Chul Han: “O sujeito narcísico não consegue estabelecer claramente seus limites. […] O mundo se lhe afigura como sombreamentos projetados de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade” (2017a, p. 10). De acordo com Han, por ser incapaz de tal reconhecimento, o eu-narcísico de nosso tempo, estando tão obcecado por desempenho e autossuperação, age em nome de uma suposta liberdade ‘para ser o que quiser ser’. Encontra-se, por isso e a partir daí, escravizado por um tu podes auto exploratório que o precipita num vazio de significação, vagueando nas próprias sombras “até afogar-se em si mesmo” (Han, 2017a) esgotado, deprimido, ansioso, solitário e desalentado.
Na verdade, antes de exaurir-se no desterro ou asfixiar-se com a própria imagem, o ‘eu-narcísico’, ilusoriamente, acha que consegue. Por vezes, ele até obtém – a partir de habilidades individuais e das supostas vantagens competitivas exigidas pelo mercado – tudo o que se entende, hodiernamente, como insígnias do poder-poder: sucesso, dinheiro, títulos, superação de metas, saúde impecável, juventude prolongada, curtidas, seguidores e influenciados. Quando muito, é possível que ele tire daí algumas vivências. Contudo, Han nos lembra que a “vivência é aditiva e cumulativa” (Han, 2017a, p. 90). Em nada se aproxima da “experiência” que nos permite o “único e o transformador” (cf. p. 90) e que acontece muito longe das selfies dos smartphones ou dos posts das redes sociais. Experiências, por serem implicativas, podem exigir a desaceleração, a retirada da multidão, o demorar-se, o estado de comparecimento diante do mistério, o segredo, o anonimato e o silêncio. Contrariamente a isso, na psicopolítica, segundo Byung-Chul Han, ‘vivências’ fazem-se condenação ao comparativo e ao concorrencial, onde há consumo de tudo, absolutamente tudo, como mercadoria. Nesse lugar não há outro, não há entre… Portanto, não há si-mesmo… só negociação, uso e serventia. Ali, onde nada, de fato, acontece – a não ser aditivas vivências que se repetem – deixamos de ser um Quem a ser revelado e passamos a ser um Que a ser adquirido por um outro que já não existe como alteridade-distinção-diferença, somente como similar mercadoria a ser consumida.
Nas palavras de Han (2017a), “hoje, a negatividade está desaparecendo por todo lado. Tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo” (p. 9). Quando o sujeito relacional se torna consumidor individualista, sentimentos negativos que sugerem qualquer forma de sofrimento são substituídos por sensações “agradáveis e excitações sem maiores consequências. O que se busca é o confortável, em última instância, a espessa imanência do igual” (p. 40). A dinâmica do “eu quero, eu posso, eu mereço” elimina, portanto, a chance de recusa, de demarcação de limite ou interpelação. O eu-consumidor precisa ser o tempo todo prontamente atendido e está determinado a avaliar se o consumo valeu a pena, com estrelas e pontuações. Mas se não ocorre o match [do inglês to match – dar igual, corresponder, equiparar-se (Dicionário Michaelis, 2016), elimina-se o ‘outro-objeto-a-ser-consumido’ e segue-se em frente com um simples toque dos dedos. Nesse sentido, Hannah Arendt alerta que a ausência do ‘outro’ destrói a possibilidade do aparecimento viabilizador do saber-se e do tornar-se ‘si-mesmo’. Para ela, o desvelamento não passa por um “propósito deliberado, como se a pessoa possuísse e pudesse dispor desse “quem” do mesmo modo como possui e pode dispor de suas qualidades” (Arendt, 2017, p. 222).
Pelo contrário, é quase certo que o “quem”, que aparece tão clara e inconfundivelmente para os outros, permanece oculto para a própria pessoa, à semelhança do daimon, na religião grega, que acompanha cada homem durante toda a sua vida, sempre observando por detrás, por cima de seus ombros, de sorte que só é visível para aqueles que ele encontrava. (Arendt, 2017, p. 222)
A daimonia acima referida fala, portanto, de um espírito que se mostra apenas no “encontro” com o outro. Aqui, entende-se o verbo transitivo encontrar como “entrar em contato com”, “unir-se a”, “passar a conhecer”. É nesse ponto que, para Byung-Chul Han, Eros se faz uma saída. Por quê? Eros é encontro! E para que tal fenômeno aconteça é preciso que o ‘eu’ se desloque, coloque-se “em direção a”, vá “para junto de”. Tal passagem é atividade atópica [a/negação, privação; topos/lugar = sem lugar] (Houaiss & Villar, 2004), ou seja, exercício de ‘não estar no seu lugar; estar fora; no estranho; no insólito’. Significa deixar a terra conhecida da autoimagem narcísica rumo à terra desconhecida do outro inabarcável, onde todos os perigos se descerram junto ao desvelamento do daimon de cada um. Era isso que Sócrates praticava com sua filosofia. Como diz Han, “a daimonia do discurso socrático remonta à negatividade da atopia” (Han, 2017a, p. 91). Por isso é que o efeito do “sem lugar” produzido pela maiêutica – (gr. M.oaeimxti xé^vri; in. Maieutics-, fr. Maícutique; ai. Müeittik; it. Maieulica) – maieutiké [tékhné], ‘arte de partejar’, ‘ciência ou arte do parto’ (Abbagnano, 2007, p. 637) – fala de um jogo erótico desvelador que, no caso dos interlocutores de Sócrates, funcionava como o som de uma flauta produtora de enleio. Ou seja, tanto prendia e encantava, quanto causava embaraço e confusão, como mostra o testemunho de Alcibíades, em O Banquete:
Mas não és flautista? Sim! E muito mais maravilhoso que o sátiro. Este, pelo menos, era através de instrumentos que, com o poder de sua boca, encantava os homens como ainda agora o que toca as suas melodias […]. Tu porém dele diferes apenas nesse pequeno ponto, que sem instrumentos, com simples palavras, fazes o mesmo. Quando com efeito os escuto, muito mais do que aos coribantes5 em seus transportes bate-me o coração, e lágrimas me escorrem sob o efeito dos seus discursos, enquanto que outros muitíssimos eu vejo que experimentam o mesmo sentimento […]
[…] E muitas vezes sem dúvida com prazer o veria não existir entre os homens; mas se por outro lado tal coisa ocorresse, bem sei que muito maior seria a minha dor, de modo que não sei o que fazer com esse homem. (Platão, 1991, pp. 91-92)
Alcibíades não sabe o que fazer com Sócrates. Alcibíades não sabe o que fazer com ele próprio, tornando-se outro ao deixar que lágrimas escorram de seus olhos, ao entrar em contato com aqueles discursos. O fascínio nele produzido se dá pelas palavras, dispensando flautas ou quaisquer instrumentos usados pelos sátiros. Sócrates é incomparável, fazendo-se a materialização da própria atopia, do ‘sem lugar’ e do feitiço perturbador que arranca a arrogância da autoimagem conclusiva e que abre possibilidades ao ‘si-mesmo’ que só são alcançadas na relação com a outridade. Isto é, Sócrates seduzia com a sua negatividade atópica, permitindo-se e causando a perplexidade necessária à produção de uma “estética de si” desvelada no brilho próprio de cada um [doxa]. Estética luminosa-singular constituída na excentricidade de ser com o outro que, pensada nos dias de hoje, fica retraída pela ditadura do igual psicopolítico, onde preponderam a dependência, o vício e a compulsão pelo eu-projeto-individualista fabricado pelo capitalismo narcísico neoliberal.
Por isso é que trazer Eros para o centro da pauta faz-se decisivo, pois ele traz a experiência de negatividade afirmadora da unicidade que se revela em cada um no encontro com o outro. Quando tal experiência erótica irrompe, segundo Byung-Chul Han, o sujeito do amor é “tomado por um tornar-se-fraco todo próprio, que vem acompanhado ao mesmo tempo por um sentimento de fortaleza. Mas esse sentimento não é o desempenho próprio de si mesmo, mas o dom do outro” (Han, 2017a, p. 11). Nesse momento, “eros vence a depressão” (p. 12) e as demais enfermidades neuronais provocadas por autolitígio e agressão sistêmica. E, a partir desse instante, o sujeito ‘infantilizado’ [kidults]6 pela psicopolítica torna-se agente transgressor ‘adultizado’ que sabe que não pode tudo, embora deseje. Um adulto que recupera, em espírito e presença, o que se deve conservar metaforicamente da imagem da criança: a graça, o êxtase e a espontaneidade de ser e estar com o outro. Por isso, despede-se da prisão imaginária autocentrada e adentra o campo do simbólico, tornando-se capaz de fazer ciranda e dar as mãos, assumir o ridículo, admitir-se imperfeito, manco e parco, valorizar o que não serve para nada, fiar-se pelo improdutivo, cair, levantar, ganhar, perder. Sujeito que se entrega e que acolhe, que cuida e se deixa cuidar, que chora e ri junto, que se arrisca, ritualiza e se deixa cativar. O ‘perigo’ erótico do outro faz-se maravilhamento que embriaga de estranheza e intimidade, recusa e rendição. Eros, então, passa a fazer-se, imediatamente, uma força efetiva de resistência contra três tipos de violência que se encontram na base do psicopoder contemporâneo e que atuam de forma correlata: a violência da transparência; a violência do igual e a violência da liberdade opressora.
Primeiramente, pelo que nos indica Byung-Chul Han, a violência da transparência atua na psicopolítica por meio da visibilidade pessoal como imperativo contínuo, constante e ininterrupto. É preciso que o eu-projeto se “anuncie” a todo instante, uma vez que virou coisa ou produto a ser consumido. Em outros termos, significa dizer que o eu-projeto precisa ser motivo de admiração, atenção e entretenimento, condenando, assim, a vida público-cultural à mera vitrine de exibição das vidas privadas, tratadas como reality shows. Nas palavras de Han: “Na sociedade positiva, na qual as coisas, agora transformadas em mercadorias, têm de ser expostas para ser, seu valor cultural desaparece em favor de seu valor expositivo”. (Han, 2017b, p. 27) Ou seja, “nessa sociedade exposta, cada sujeito é seu próprio objeto de propaganda. Tudo é medido em seu valor de exposição” (2017c, p. 209). Por conta disso, se o indivíduo não publica ou publiciza a sua vida privada (a sua produtividade em todos os setores, como trabalho, viagens, estudos, convivência familiar, eventos sociais, rede de networking etc.), jamais terá a chance de ser considerado um vencedor [winner], consequentemente incapaz de influenciar, entreter, receber curtidas e conquistar seguidores. Ou seja, se o eu-projeto não existe ativamente nas redes sociais, ele simplesmente não existe. Contudo, Byung-Chul Han alerta que o que começa na exposição voluntária termina na pornografia: “o capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo tudo como mercadoria e votando-o à hipervisibilidade” (2017b, p. 59). Para Han, na contramão da pornografia – que tudo mostra – está o erotismo com sua negatividade geradora de ambivalência e ambiguidade. “Não existe erotismo na transparência. É precisamente onde desaparece o mistério em prol da exposição e do desnudamento total que começa a pornografia” (p. 60). Sua marca é, para Han, a positividade penetrante e incisiva, portanto, a violência.
Na base da exigência permanente por transparência se encontra uma ideia de mundo, de ser humano livre de toda e qualquer forma de negatividade. […] A coerção por uma transparência total nivela o próprio ser humano a um elemento funcional de determinado sistema, e nisso é que reside a violência da transparência. Também faz parte da integridade de uma pessoa certa dose de inacessibilidade e impermeabilidade; total iluminação é violência. (Han, 2017c, p. 204)
Ao negativar a exacerbação da transparência com sua dose de inacessibilidade e impermeabilidade, Eros abre espaço para o desconhecido, permitindo-nos lidar com o que se passa no terreno do inexplorado que nos chama e do inexplicável que em nós se oculta até estarmos diante do outro7. É disso que se trata quando o filósofo diz que Eros se localiza no encobrimento que negativa a positividade da exposição pornográfica. Nesse sentido, a ‘transparência’ imposta pela psicopolítica hegemônica de nosso tempo é, realmente, truculenta. Ela atua impedindo que a ‘alteridade se manifeste em sua beleza incomensurável’. “A política generalizada da transparência consiste em fazer desaparecer totalmente a alteridade, condenando tudo à luz do igual” (Han, 2017c, p. 205). Aí está a correlação com a segunda forma de violência apontada por Han: a ditadura do igual. A transparência, para Han, “se manifesta no nivelamento do outro em igual; ela é i-gualitadora” (p. 205), eliminando a alteridade. O outro como incógnita, pergunta, sedução, desejo, inferno e dor… evapora-se. “A negatividade do outro dá lugar à positividade do igual” (p. 205). Isso pode parecer contraditório com o que vemos circular na acelerada corrente de informações injetada nas redes sociais pelo sistema. Afinal de contas, a todo momento propaga-se o quanto é necessário demonstrar os “diferenciais” competitivos de cada eu-projeto; assim como se faz com produtos e serviços postos à venda. O problema é que tais “diferenciais”, associados à comparabilidade e à competitividade, divulgados pelo discurso econômico-mercadológico, fazem-se, na verdade, apenas clichês, esvaziados de significação existencial. Com isso, como denuncia Byung-Chul Han, “hoje, todos querem ser diferentes do outro. Mas nesse querer-ser-diferente, o igual se perpetua” (p. 38) A diferença do “eu” só existe quando e onde o “outro” pode existir. Distinção e diferença têm relação com o fato de cada um ser singular em meio à pluralidade de outros singulares (cf. Arendt, 2017, p. 218).
Quando alguém, de fato, aparece para outro alguém, no solo de Eros, a unicidade e a diferenciação efetivamente se instalam. É aí que Byung-Chul Han sinaliza que a autoestima – tão focalizada como condição de poder do nosso ‘eu-bem-sucedido’ contemporâneo – “não pode ser produzida por mim mesmo. Para tanto, eu sou direcionado ao outro como instância de gratificação que me ama, elogia, reconhece e estima” (Han, 2022a, p. 43); e vice-versa. Apenas quando temos a consciência de que somos importantes para o outro e que o outro se faz importante para nós é que a “autovalorização” e a “auto afeição” se confirmam. O lócus da autoestima não é o indivíduo, mas o espaço que há no intervalo entre tal indivíduo com alguém. Para ser único no mundo, é preciso, portanto, cativar e se deixar cativar8. Mas, o inferno do auto espelhamento prevalecente na atualidade inviabiliza a ‘capacidade de responder por’ exatamente porque esse cultivo exige tempo e dedicação a tudo o que brota da lacuna entre o ‘eu’ e o ‘outro’. E a sociedade do desempenho privilegia, apenas, a positividade veloz da ‘produção-consumo’ do ‘eu-narcísico’ e não a negatividade morosa da ‘responsabilidade-cultivo’ do ‘sujeito-nós’. Aterradoramente, então, a expulsão do outro, diz Han, “põe em curso um processo de destruição inteiramente diferente; a saber, a autodestruição, pois […] um sistema que recusa a negatividade do outro desenvolve traços autodestrutivos” (Han, 2022a, p. 8).
Quando tudo se torna comparável, o que é invisível aos olhos, esvaece-se. Desaparece o cuidado com o essencial e fica-se capturado pela inconsistência de uma realidade virtualizada que Byung-Chul Han denomina infosfera ou o mundo das não-coisas (cf. Han, 2022b, pp. 8-10). Nessa instância, perde-se contato, progressivamente, com o que até então conhecíamos como ‘mundo concreto’ – mundo mediador de coisas e seres que nos interpelam – onde as relações podem contar com o olho-no-olho, o toque, o cheiro… a presença física, enfim. O que nasce dessa presença corpórea é o que fica retido em nós, mesmo na distância, na saudade ou na morte. Na infosfera dispensa-se a lembrança, a história e a memória de experiências reais, aceitando como suficiente apenas o que se gera por hipercomunicação, armazenamento de dados e manipulação algorítmica. Para Byung-Chul Han, “cobiçam-se vivências e estímulos, nos quais, porém, se permanece sempre igual a si mesmo. Acumulam-se Friends e Follows, sem nunca se encontrar com o outro” (Han, 2022, p. 10).
Essa sociedade de Narcisos (narcóticos) que não suporta a vida real e sua negatividade, positiva-se no entretenimento, transfigurando a vida em realidade gamificada. A virtualidade do ‘mundo’ das não-coisas, promove uma superficialidade imagética e digital à luz do toque dos dedos ou do comando de voz. Dessa forma, a infosfera vai permitindo que tudo seja feito para desviar a atenção, mitigar os encargos e afastar os desconfortos. O eu-projeto entretém e torna-se entretido: “[…] para ser, para pertencer ao mundo, é preciso ser algo que entretém. Apenas aquilo que entretém é real ou efetivo. Não é mais relevante a distinção entre mundo fictício e mundo real” (Han, 2019b, p. 206). Quando qualquer estado de privação se apresenta com um chamado de volta ao mundo concreto – ameaçando o estado de dispersão – a primeira providência que se faz é torná-lo motivo de otimização e superação rumo a uma positividade ainda maior que a do estado anterior. Mas se a inquietação perdurar, o enxame barulhento (2018a, p. 112) de eus-narcisos “para escapar do vazio aflitivo recorre ou à lâmina de barbear ou ao smartphone” (2022a, p. 46), denuncia Byung-Chul Han. Isso só confirma a ideia de que, perdida a capacidade de responsabilizar-se pelos cultivos, o indivíduo perde a capacidade de responsabilizar-se por si mesmo, expandindo um sistema que desenvolve traços autodestrutivos, como já mencionado anteriormente pelas palavras de Han.
A mensagem ‘viralizada’ pelo maquinário hiperinformativo, no entanto, apregoa outra coisa: ‘você está por sua conta e risco’ e ‘você é absolutamente capaz de decidir quem você se torna no mundo infosférico do qual passa a participar’. O tu podes da psicopolítica mostra, nesse ponto, a pior de suas hostilidades: a violência da liberdade opressora. Uma vez estando, insultuosamente, desnudado pela ditadura da transparência e fadado ao inferno do igual, “a sociedade do desempenho alcança sua eficiência máxima onde a liberdade e a autoexploração coincidem. […] Hoje a supervisão não se realiza como ataque à liberdade, mas, ao contrário, liberdade e controle se identificam” (Han, 2017c, pp. 211-212). Vale, portanto, pormos em questão essa tal liberdade, tida como pedra angular da psicopolítica. Byung-Chul Han atenta para o fato de que “o sujeito liberal como empreendedor de si mesmo é incapaz de se relacionar livre de qualquer propósito. Entre empreendedores não surge amizade desinteressada” (Han, 2018b, p. 11). Na contraposição desse axioma, o filósofo lembra, contudo, que:
[…] ser livre significa originalmente estar com amigos. Liberdade (Freiheit) e amigo (Freund) possuem a mesma raiz indo-europeia. Fundamentalmente, a liberdade é uma palavra relacional. Só nos sentimos realmente livres em um relacionamento bem-sucedido, em um feliz <estar junto>. O isolamento total para o qual conduz o regime neoliberal não nos torna livres de fato. Assim, nos dias de hoje, coloca-se a pergunta: para escapar à fatídica dialética da liberdade que a transforma em coerção, não deveríamos redefinir ou reinventar a liberdade? (Han, 2018b, p. 11)
Atentemo-nos para isso: como escapar à fatídica dialética da liberdade que a transforma em coerção? Como redefinir ou reinventar a liberdade?9 Han admite que tais perguntas não possuem respostas fáceis, já que o neoliberalismo mostra sua eficiência exatamente por saber explorar tão bem tudo o que pertence à expressão da liberdade, como por exemplo a emoção, o jogo e a comunicação. Não é um sistema que explora os indivíduos contra a sua vontade, usando da disciplina ou do regramento, como no biopoder do século passado. Ao contrário, usa a liberdade individual transformando cada indivíduo em capital, em negócio. “O capital se multiplica enquanto competimos livremente uns com os outros” (p. 13) capturados pelo panóptico digital10 do psicopoder e submetidos a uma espécie de encarceramento muito mais agressivo e efetivo do que o modelo exercido pelo biopoder. A versão contemporânea do panóptico, por ser digital, permite aos internos se comunicarem a todo instante, expondo-se por sua própria vontade (Cf. Han, 2018b, p. 19). Logo, mais violento que o esquema de vigilância do seu antecessor, a gaiola panóptica digital de agora é aperspectivística. Ela conhece e controla nossos pensamentos e nossas emoções, por meio do Big Data, conseguindo intervir em nossos processos psicológicos (cf. Han, 2018a, p. 130). Por isso nós nos mantemos detidos pelo nosso próprio vício, pela nossa própria dependência, pela nossa própria compulsão. Daí a violência da liberdade opressora de nosso tempo ser tão perigosa. “Somos prisioneiros de uma memória digital” (Han, 2018b, p. 85) da qual não queremos mais sair. Como reforça Byung-Chul Han, na sociedade do desempenho, narcisicamente, “cada um é panóptico de si mesmo” (p. 58). Escapar à fatídica dialética que transforma a liberdade em coerção é reinscrever a noção liberdade como “cooperação mútua”, “mutualidade amorosa”.
Portanto, a resposta à violência da ‘liberdade opressora’, dada pela transgressão de eros, em Han, é novamente a aproximação entre as noções de liberdade (Freiheit) e amizade (amigo, Freund), rechaçando a concepção – desagregadora – de liberdade enquanto ‘emancipação’ ou ‘livre iniciativa’ do eu. Esse deslocamento, além de reparar uma distorção adjetiva (uma vez que é contraditório pensar uma ‘liberdade opressora’), traz de volta a beleza associativa do laço. Para Han, “a salvação do belo é a salvação do outro” (Han, 2019a, p. 97). Eis um jeito artístico de negativar a positividade da psicopolítica e trazer alguma redenção à Narciso, como faz Salvador Dalí no quadro A Metamorfose de Narciso [1937]. A tela não deixa de retratar a sua morte. Contudo, da mão ossificada brota uma flor. Para Rosa Maria Maurell, essa transformação se faz por amor à Gala, companheira e musa do artista, presença pulsante em toda a sua obra. Maurell justifica tal análise citando o próprio Dalí: “Quando aquela cabeça racha; quando aquela cabeça explode; quando a cabeça se despedaça em pedaços; será a flor. O novo Narciso, Gala, Meu Narciso” (Maurell, 2005, citado em Pascholati, 2020, párr. 8). Gala é o outro. Gala é Eros. Êxodo de si na direção do que é essencial. Menos poder-poder e mais rosas, raposas e pássaros. Meninos, meninas e artistas sabem do que se trata. E nós?
Nós, nem sempre alcançamos. E, muitas vezes, em nome do amor… subtraímos, anulamos, apagamos e destruímos o outro. Ou seja, nem sempre a negatividade própria do erotismo, acima apontada por Byung-Chul Han, se faz via de redenção. Se o filósofo não perde de vista o atravessamento histórico da contemporaneidade sobre o erotismo, é necessário, então, expandirmos a discussão para além desse sentido afirmativo-soteriológico por ele apontado. Por isso, no próximo tópico, confrontaremos a teoria por ele sustentada com outras negatividades-não-afirmativas. A esse exercício, chamaremos de crítica da razão erótica, visando elucidar, por um lado, o seu campo hermenêutico e caracterizar seus limites; por outro, avaliar o valor do erotismo haniano segundo sua capacidade de produzir resistência e afirmatividade em contexto onde a negatividade não se constitui como experiência redentora.
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3. Por uma crítica da razão erótica: para além de messianismos
O pensamento haniano é condicionado pelo que poder-se-ia chamar de ontologia negativa, ou seja, uma forma apofática de compreensão originária da condição humana e do mundo. Isso não significa, contudo, que a noção haniana de negatividade se apresente tão-somente de modo afirmativo. Como deve ter ficado claro ao longo do presente estudo, a descrição do sujeito do desempenho e de seu correlato histórico-mundano, a sociedade do desempenho, depende da estratégia contrastiva de oposição hermenêutica à presença de elementos “negativos” nas formações sociais euro-ocidentais anteriores ao neoliberalismo. Isso se evidencia quando Han distingue a sociedade do desempenho da sociedade disciplinar, que, como vimos, à luz de Foucault, é compreendida como “uma sociedade da negatividade”. Isso porque a sociedade disciplinar é “determinada pela negatividade da proibição”. A proibição em questão outra coisa não é que “a negatividade da coerção” (Han, 2017d, p. 24). A disciplina foucaultiana é entendida, portanto, como normatização cerceadora, advinda de um certo “fora”, que atualiza muitos “nãos” e muitos “deveres” até produzir o sujeito produtivo necessário para a Europa ocidental na primeira fase da revolução industrial. Essa e outras negatividades normatizadoras, moralizadoras, inquisidoras, culpabilizadoras e castradoras nada têm a ver com a ontologia negativa supramencionada. Tais negatividades geralmente são descritas para mostrar como a violência positiva do neoliberalismo resulta de uma estratégia de poder (psicopoder) mais eficaz, dotada de uma violência mais sutil e mais intensa que as demais formas de subjetivação anteriores à contemporaneidade (2017c).
O que entendemos por ontologia negativa almeja originariedade, razão pela qual, quando descrita, possibilita pensar num conjunto de resistências à ditadura da positividade neoliberal. É nela que se revela certa soteriologia, como é o caso da erótica haniana. Ao entender o erotismo como êxodo em direção ao não-lugar (atopós) que caracteriza a irredutibilidade e heterogeneidade da alteridade; ao descrever o erotismo como um tipo específico de poder que se opõe radicalmente à onipotência do psicopoder (I always can), a saber, o não-poder-poder; ao inscrever na experiência erótica a vulnerabilidade e o devir existenciais de quem exerce amor, Han está a nos dizer que o amor-erotismo é uma potência repleta de impotência nos permitindo resistir à violência positiva do narcisismo sem fronteiras do sujeito e da sociedade neoliberais. A negatividade atravessa, agora, o próprio ser da existência e do mundo. O não-poder-poder, que nada mais é que o poder-não-poder, isto é, o poder-da-impotência nos salva da positividade ontológica onde o mistério é aniquilado pela opacidade dos objetos (não-coisas) e das experiências político-existenciais correlatas. Dessa forma, erotismo, impotência político-existencial, alteridade e negatividade ontológica se casam na analítica de Han. Ora, é exatamente esse tipo afirmativo de negatividade (e não normativo ou violento) que será operacionalizado por Byung-Chul Han ao se opor à positividade contemporânea, como procuramos enfatizar no tópico anterior. Eis o ponto em que nos encontramos. Ele deve se tornar o foco da nossa crítica da razão erótica, como apresentada na introdução, a ser ensaiada agora de forma sintética em seus traços essenciais.
Estamos, de fato, na sociedade da absolutização da positividade? Deixamos de ser uma cultura bacteriológica, que teria no paradigma da imunidade o seu sentido maior (anular alteridades ameaçadoras), e passamos a ser uma cultura neuronal, cujo inimigo não está “fora”, mas atua internamente, a partir da autocorrosão e autoimplosão psico-orgânica? (cf. Han, 2008b, pp. 9-24). Será que, efetivamente, vivemos na época do “desaparecimento da alteridade e da estranheza” (cf. Han, 2017a, p. 9)? Han acredita que sim. O problema é que sua fala sobre o neoliberalismo não dá conta, radicalmente, de negatividades destrutivas pertencentes ao sentido colonial do capitalismo. É uma fala que não consegue alcançar a unidade sintética de positividade e negatividade euro-colonial moderna. Daí, temas como racismo e hierarquias de gênero, por exemplo, passarem ao largo de sua discussão. Ele não percebe, portanto, que o capitalismo neoliberal continua promovendo o mesmo ecogenocídio contra a Terra e populações indígenas na América do Sul e em todo hemisfério sul. Como mostrou Maldonado-Torres (2018), nós, filhos e filhas da lógica colonial (colonialidade) que tem no capitalismo um de seus principais combustíveis, vivemos uma catástrofe metafísica:
A catástrofe metafísica inclui o colapso massivo e radical da estrutura Eu-Outro de subjetividade e sociabilidade e o começo da relação Senhor-Escravo. Isso introduz o que denominei em outro lugar de diferença subontológica ou diferença entre seres e aqueles abaixo dos seres. Isto é, a principal diferenciação entre sujeitos será menos uma questão de crença e mais de essência nessa nova ordem mundial. (p.37)
O neoliberalismo se alimenta da subtração ontológica (sub-seres) de vidas subhumanizadas, que assumem, mesmo depois da abolição da escravatura, a funcionalidade exploratória da condição de escravizado/a. Não se trata, aqui, da ideia ontológica de menos-ser ou de outro do ser, como quis Simone de Beauvoir, ao falar da mulher como segundo sexo ou o outro do homem (cf. Beauvoir, 2019). Trata-se, de outro modo, do não-ser (cf. Dussel, 1977), isto é, vidas que não são, ou seja, que são estabilizadas como não-seres. Diferentemente do que pensou Han, o neoliberalismo não é somente o reino do devir desenfreado dos projetos produtivos. Ele é também (e sobretudo) o reino da estabilização negativa das vidas mortas. A necroecopolítica é a sua lei11. Não é à toa que os racismos sistêmicos ou estruturais não são voláteis, não são suspensos com a produtividade empresarial. Antes, parecem se eternizar com o curso da história, agravando-se ainda mais por meio do discurso cínico da meritocracia. Ora, se assim o é, como o amor se dá em contexto de negatividade destrutiva do capitalismo colonial?
O capitalismo neoliberal colonial institui, como mostrou Maldonado-Torres (2018), a guerra como paradigma hegemônico. Não se trata da guerra contra si mesmo, o que é próprio do psicopoder. A guerra possui inimigos históricos, os não-seres produzidos e reproduzidos desde 1492, com a gênese da lógica colonial. Nesse contexto, o amor se dá muitas vezes em meio à guerra e contra a guerra que o condiciona. Ouçamos bell hooks: “Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso” (Hooks, 2010, párr. 4). Mulheres racializadas como pretas conhecem o fenômeno da escassez do amor. Impossibilitadas de receber amor, devido a herança colonial que sobrevive em seus corpos e afetos, se veem despotencializadas na capacidade de exercer amor, pois “com a abolição da escravatura, os negros não ficaram imediatamente livres para amar” (Hooks, 2010, párr. 6). A despotencialização do amor decorre, na análise de hooks, do não ter-sido-amado/a em condições racistas. Eis aqui um elemento trabalhado de forma deficitária por Han em sua compreensão do amor: a possibilidade de amar deriva da passividade originária do ser-amado/a, como pensou Jean-Luc Marion (cf. Marion, 2006) Amar é verbo que integra a voz ativa de quem ama, porém só pode ser exercido se houver a voz passiva do ser-amado/a. É verdade que Byung-Chul Han constata, como sinalizamos no tópico anterior, que o outro é a instância de “gratificação que me ama, elogia, reconhece e estima” (Han, 2022a, p. 43). Contudo, a sua análise não chega a alcançar que, com a racialização que atravessa o capitalismo colonial, as vidas que se identificam com o não-ser são condicionadas por modos restritivos do ter-sido-amado/a. Portanto, como viver o amor nessas condições de negatividade destruidora?
A guerra que atravessa o capitalismo neoliberal colonial produz outro tipo de alteridade: não mais a alteridade como atopia, nem alteridade como não-ser (outro/a como sub-ser), mas o/a outro/a como ameaça, como inimigo/a, como fonte de violência. Quem é um sub-ser sabe reconhecer a alteridade-ameaça a todo instante. Um dos perigos da guerra é nos tornarmos reféns de sua lógica destrutiva e ameaçadora, o que produz subjetividades bélicas, desacostumadas com a possibilidade de amar e serem amadas. Por esse motivo, a alteridade-ameaça não é negatividade que nos salva do narcisismo contemporâneo, mas fonte de negatividade que violenta quem eu e outros/as somos. Amar esse/a outro/a é se expor à morte violenta. Perguntamos, então: como amar em contexto de neoliberalismo colonial, em meio à violência de gênero (por exemplo, cultura do estupro), à pobreza econômica, ao racismo, ao capacitismo, dentre outras violências identificadas como opressão?
Em condições de neoliberalismo colonial, amar é arte paradoxal. Isso porque, para além do que pensa Han, o amor não é somente êxodo. É sobretudo potência afetiva requalificadora da coexistência no mundo e na terra. hooks chega a afirmar: “A ideia de que o amor significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação” (Hooks, 2010, párr. 37). Com isso, ela está qualificando o amor como potencialização da própria existência e de outrem como modo de atuação. Essa atuação, por um lado, nega, rejeita as condições violentas do neoliberalismo colonial; por outro, afirma os viventes negados por esse sistema de opressão. Nega a negatividade destrutiva, em nome da negatividade afirmativa. Em meio à guerra, luta contra a negatividade bélica, em prol da criação de modos afirmativos de sermos atravessados/as por outrem, de atravessarmos outrem, sem que a violência destrua a potência do pronome nós.
Se o racismo capitalista deixou claro a despotencialização do amor nas vidas pretas, a monogamia euro-cristã compulsória que se tornou normativa com o genocídio indígena a partir de 1492 também mostra que o capitalismo, ao contrário do que pode parecer, não suporta a autonomia do amor erótico, algo não tematizado por Han. Como mostrou Nuñez (2023), a monogamia euro-cristã colonialmente imposta aos povos originários é um dos correlatos da colonialidade, do capitalismo que a atravessa e da moralidade que os legitima. Como ela mesma afirma: “Mais do que uma questão de quantidade, a imposição da monogamia fazia parte de todo um projeto civilizatório que buscava incutir a moral cristã como a única possível” (Nuñez, 2023, p. 27). Essa imposição jamais fora pensada pelos missionários cristãos como violência e mal, mas como ato de amor, prática do bem. Daí o espanto: “para contracolonizar, ou seja, para fazer o esforço contrário à colonização, precisamos reconhecer que é justamente em nome do bem, da família e do amor que a maior parte das violências se perpetua” (p. 27). Sem a violência desse “amor cristão”, não é possível compreender como o capitalismo colonial se prolifera no “Novo Mundo”.
O problema da não monogamia, diferentemente do que se poderia supor, não é de ordem quantitativa12. Trata-se de uma questão qualitativa que coloca em xeque os pressupostos históricos da monogamia: impossibilidade de amores concomitantes (afetivos-sexuais ou outros), exclusividade afetiva, relação de posse, perenidade afetivo-sexual, fundamentação da família etc. A não monogamia, nesse caso, é exercida não por causa da pluralidade de parcerias afetivo-sexuais, mas pela autonomia e liberdade de vínculos amorosos, que podem ou não se manifestar sexualmente, porém são centrados em valores irredutíveis ao apossamento do outro, à redução do amor aos ideais romântico-exclusivistas e à ideia de que o amor produz segurança e estabilidade absoluta às pessoas que se amam. Em outras palavras, conforme Nuñez, o sentido não monogâmico do amor se revela na soberania afetiva e no enriquecimento existencial proporcionado por afetos amorosos não normativos. Como a heterossexualidade compulsória colonial, o machismo, a misoginia e outras violências se alastram na cultura e sequestram o sentido libertário do amor. Não basta dizer que o sentido do erotismo é o êxodo e a experiência da negatividade afirmativa da alteridade, se o capitalismo colonial privatiza o amor no interior da violência monogâmica. Enquanto o erotismo não for pensado e exercido no interior de relações singulares capazes de abrir a existência a outras alteridades, o amor ficará refém do narcisismo monogâmico, incapaz de produzir soberania afetiva.
Nuñez e hooks nos ajudam a questionar o exercício do amor em meio aos contextos estratificados de violência que não se reduzem à violência da sociedade da positividade pensada por Han. Elas partem de opressões que nada têm a ver com o sujeito do desempenho, mas somente com o sujeito sujeitado por violências sistêmicas e estruturais que fazem parte do sentido colonial do neoliberalismo. Nesse caso, o narcisismo dos indivíduos não é o principal problema do erotismo, mas o/a outro/a revelado como ameaça e violação – este sim é um dos obstáculos decisivos para o exercício do amor no mundo das existências desontologizadas, aquelas que são consideradas não-seres. Ainda que a analítica de Han faça sentido – especialmente se pensada para homens brancos, do hemisfério norte (alguns do sul também), heterossexuais, cristãos e inseridos no mercado de trabalho – é impossível dizer que sua ideia de contemporaneidade seja universalmente válida e que sua erótica possua caráter soteriológico. Antes de salvar o ser humano do narcisismo do sujeito do desempenho, é preciso repensar o amor e exercê-lo a partir das agruras daqueles e daquelas que estão no mundo, sem que o mundo os/as deixe ser. A indiferença às existências que não são é talvez o primeiro obstáculo do erotismo no nosso tempo.
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4. Considerações Finais
Procuramos analisar, neste artigo, o erotismo como resposta à violência capitalista-mercadológica na perspectiva da obra do filósofo Byung-Chul Han, considerando, incialmente, a negatividade erótica enquanto negatividade-afirmativa. Aquela que se faz criadora e se revela como realidade soteriológica diante da positividade do desempenho, própria do modelo hegemônico por ele chamado de psicopolítica. Erotismo que entende, portanto, a negatividade como possuidora de valor de libertação-resistência a três formas de controle psíquico-emocional que, na verdade, fazem-se modos violentos de poder na contemporaneidade: a ditadura da transparência; o inferno do igual; a coação da liberdade opressora. Tais agressões subvertem, ao mesmo tempo que radicalizam, o ‘Tu Deves’ da biopolítica do século passado pela injunção capiciosa do ‘Tu Deves-Poder’ (Yes, you can) de nosso século.
Ou seja, a sua coerção se faz via ‘imperativo do gozo’, como explica Slavoj Zizek, em entrevista concedida a Vladimir Safatle (2003): “Goze de todas as maneiras!” (párr. 8) – impelindo o eu-projeto narcísico até a implosão de si por infartos psíquicos, esgotamento, solidão e desalento. Quando chega a esse ponto, o sujeito do desempenho não só se dá por vencido em termos de saúde física e mental, mas também em valores cívicos, laços solidários e senso de comunidade. Ele é, apenas, um átomo disperso e isolado, não mais se relacionando como pessoa ou cidadão, mas como comerciante e homem/mulher de negócios (cf. Rico-Palacio, 2019, p. 157)13. Vimos que, para Byung-Chul Han, na contramão desse depauperamento, eros age interditando a truculência de tantas violações, fazendo com que o ‘sujeito-nós’, eroticamente restaurado pelo êxodo de si rumo ao outro, esteja novamente apto à mutualidade e à alteridade. Eis o caráter salvífico-messiânico do erotismo que identificamos estar presente na obra de Han, o erotismo que nos liberta do sistema político-simbólico neoliberal sustentado por uma organização social cáustica e decadente.
Mesmo reconhecendo a validade da tese haniana analisada na primeira fase do artigo, e ainda que Byung-Chul Han se enquadre no que poder-se-ia chamar de Filosofia clássica alemã, procuramos, na segunda parte do estudo, questionar até que ponto tal teoria conseguiria dar resposta à violência da negatividade-negativa neocolonial; a essa análise, chamamos “por uma crítica da razão erótica: para além de messianismos”. Através dela, indagamos como o eros, a partir da perspectiva de Han, pode ser pensado quando tratamos de subjetividades que têm a experiência do amor interditada por todo tipo de preconceito e exclusão. Entendemos que os pressupostos da obra haniana, nesse caso, não alcançam tal problemática. Os sujeitos sujeitados pelo capitalismo são existências que ainda estão longe de poder-não-poder porque, absurdamente, ainda se encontram na condição de não-ser. São vidas mortas. Vidas invisibilizadas, que sequer são consideradas dignas do narcisismo do sujeito do desempenho. Por que não haveríamos de abordá-las se o tema é a violência da psicopolítica?
É impossível propor uma resposta erótica à ferocidade positivada do capital pela voz transgressora de um “no, we can’t”, sem considerar os tantos sem voz dentro do neoliberalismo. Inserir tal debate na pauta é, para nós, mais do que válido ou possível; é um compromisso com o fazer filosofia. Como lembra Karl Jaspers, “os fenômenos devem ser explorados ao infinito”, afinal, “o objetivo do pensar filosófico é levar a uma forma de pensamento capaz de iluminar-nos interiormente e iluminar o caminho diante de nós” (Jaspers, 2011, p. 10 e 24). Por isso, concordamos quando Byung-Chul Han aponta como resposta à ditadura da transparência- um tanto de inacessibilidade e impermeabilidade; ao inferno do igual – uma busca pela valorização das diferenças; e à coação da liberdade opressora – a substituição da livre iniciativa emancipatória do eu por um ‘feliz estar junto’ (Freund) na teia relacional.
E mais, defendemos que se a violência psicopolítica devasta, hegemonicamente, a modernidade tardia, as contribuições de transgressão e resistência, propostas por Byung-Chul Han, precisam ser obviamente reconhecidas. “Comecemos por acolher as respostas dadas”. Porém, “nenhuma será a última. Cada qual conduzirá a novas indagações, até que a indagação final tenha o silêncio como resposta” (Jaspers, 2011, p. 12). Na resposta final, eros poderá pulsar em todos, para todos e entre todos. Antes de chegar a esse silêncio sabemos, entretanto, que há muitos caminhos a serem abertos, vozes a serem resgatadas e reparações a serem feitas. Quando, talvez, chegarmos nesse momento, a humanidade estará pronta para responder, eroticamente, à pergunta que a funcionalização mercadológica adora fazer: “Para que amor?” Nosso silêncio terá deixado claro: “para nada”. O nada desse silêncio não virá do vazio, mas de “onde a própria essência do homem encontra meios de falar-lhe através do seu eu mais íntimo, através de suas necessidades, da razão, do amor”14 (Jaspers, 2011, p. 12). Nesse instante, o thaumázein (θαυμάζειν) terá sido, novamente, instaurado em nós.
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1. Estamos nos referindo ao sentido crítico da genealogia, como fora caracterizado por Nietzsche no prefácio de Para a genealogia da moral. Na seção 6, ele afirma: “Enunciemo-la esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado” (Nietzsche, 2000, Prefácio, p. 12, §6). Avaliar o valor do valor do erotismo em Han, tomando como fio condutor não a vontade de poder, mas a afirmatividade do amor em contexto de negatividade opressora, eis o que devemos realizar neste estudo.
2. A reflexão sobre a entrada na psicopolítica e a prevalência do ‘eu-projeto’ sobre o ‘sujeito disciplinar’ da biopolítica pode ser encontrada em várias passagens da obra de Byung-Chul Han. Sugerimos o Sociedade do Cansaço (2015), o Topologia da violência (2017) e o Psicopolítica: neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2018), como boas fontes.
3. O ideal do eu [Ich-ideal], em Freud, são os significantes oriundos das figuras parentais responsáveis por amalgamar o eu ideal [ideal-ich] de cada indivíduo. Portanto, o eu ideal é a imagem modelada a partir das exigências do ideal do eu a ser perseguida durante toda a vida, e nunca alcançada, por cada um de nós. Em textos como: Conferências introdutórias sobre Psicanálise (1917), Psicologia das massas e a análise do eu (1921), O Eu e o Isso (1923) e Novas Conferências introdutórias sobre Psicanálise (1933), é possível perceber a importância evolutiva do tema na obra freudiana e as associações com as funções de consciência moral, censura e a própria atuação junto ao supereu.
4. É possível que tal expressão tenha sido referenciada por Freud a um quadro da era eduardina, da Academia Real, que trazia tal título e mostrava dois policiais londrinos interrompendo o tráfego intenso para deixar que uma babá atravessasse a rua empurrando um carrinho de criança (nota da página 108 do Livro XIV das Obras Completas de Sigmund Freud – 1914/1916).
5. Coribantes. Na Grécia antiga, sacerdotes de Cibele que dançavam ao som de flautas e outros instrumentos, soltando gritos estrídulos (Dicionário On-line de Português, s.f.).
6. Termo utilizado pelo teórico político americano, Benjamim Barber, na obra Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos.
7. É o que acontece com o relato da menina de Clarice Lispector, no conto Cem Anos de Perdão, ao olhar com admiração uma rosa altaneira plantada no canteiro de um jardim. “Do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como em queria. E não havia jeito de obtê-la”. É, não havia. A rosa estava plantada no solo de uma casa particular. “Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume”. “Então não pude mais […], entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. […] Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos […] O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha” […] Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”. A pergunta, seguida da resposta: “O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha”, faz do “minha” lispectoriano não ‘posse’, mas ‘certidão de encontro’. Transgressão erótica, ‘glória’ que ninguém consegue tirar quando o êxodo se dá na direção do outro. Clarice Lispector encerra o conto dizendo que “ninguém nunca soube” e “que ela não se arrepende”; afinal, quem rouba rosas tem cem anos de perdão. Ladrão de rosas não representa perigo para as casas; ele é a primeira vítima do assalto regido por Eros. “Só quem rouba rosas é capaz de entender […] Eu, em pequena, roubava rosas” (Lispector, 1991, pp. 68-70).
8. Essa lição tornou-se clássica na personificação do príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. Ao se deparar, na Terra, com milhares de rosas iguais à sua (deixada em seu planeta) o menino desapontou-se, infeliz. “Eu me julgava rico de uma flor sem igual, e é apenas uma rosa comum que eu possuo – deitado na relva, chorou”. Mas nesse momento, surge a raposa… que o ensina sobre “cativar”, fazendo com que ele compreenda do que se tratava a unicidade da sua rosa. “[…] se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo… – Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor…”. E disse ele ao encontrar as rosas: “Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o para vento. Foi dela que eu matei as larvas […]. Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa”. O pronome “minha” no contexto do príncipe-menino salta para além da “certidão de encontro” da menina-que-rouba-rosas de Clarice. Nesse caso, o “minha” é sinônimo de “única no mundo para mim”, relação de cuidado exemplificado pelo regar, abrigar, escutar e partilhar o silêncio. Cultivo do outro, como outro: “– Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante”. Daí a raposa declarar ao menino o segredo do ser único no mundo: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa” (Saint-Exupéry, 1994, pp. 65-70).
9. Podemos ver a reinvenção da liberdade na relação entre A menina e o pássaro encantado, conto de Rubem Alves. O pássaro, melhor amigo da protagonista, vive livre pelo mundo, voltando com frequência para vê-la, ao sentir saudade. A cada volta, suas penas apresentam cores e formas distintas, de acordo com os lugares por onde passa. O amor entre a menina e o pássaro se dá porque ele sempre tem estórias de suas aventuras para partilhar. Eles trocam e cultivam, dessa forma, o encanto um pelo outro. Até que, sofrendo de saudade, a menina decide aprisioná-lo e o pássaro lamenta: “- Ah! Menina… Que é que você fez? Quebrou-se o encanto” (Alves, 1999, s/p). […] “O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente. Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar. Também a menina se entristeceu” (s/p). Decidiu ela, então, abrir a porta da gaiola e devolver-lhe a liberdade para voltar quando quisesse cheio de estórias para partilhar […] “Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro. Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar” (s/p).
10. Como dissemos anteriormente, o panóptico [do jurista inglês Jeremy Bentham] consistia em uma prisão em formato de anel, dividido em celas. No centro do local, havia uma torre com um vigia que observava os presos sem que ninguém pudesse vê-lo. Patrulha e monitoramento eram feitos ininterruptamente. Esse foi o modelo de efetivação do biopoder. Byung-Chul Han atesta que na psicopolítica esse antigo modelo foi potencializado a uma espécie de panóptico digital.
11. Necroecopolítica: diferentemente da necropolítica de Mbembe que caracteriza um dos exercícios de poder hegemônicos do nosso tempo como promotor de “mundos de morte” e de “vidas mortas” (cf. Mbembe, 2018, conclusão), entendendo tanto este mundo quanto as vidas mortas de forma antropocêntrica, a necroecopolítica visa a conjugar os mundos de morte com a Terra morta, pensando, assim, a maquinaria destrutiva necropolítica de forma antropocósmica (cf. Cabral, 2022).
12. Além de Geni Nuñez, autora que está sendo mencionada neste estudo, a crítica da violência monogâmica e do amor submetido a esta lógica, pode ser encontrada, dentre outros estudos, na obra O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos, excelente livro de Brigitte Vasallo. Para a autora, a monogamia é um sistema, que funciona como a fundação da casa onde historicamente moramos. “As fundações desta casa são, por um lado, o sistema sexo-gênero binário, que suporta toda a estrutura da codependência reprodutiva entre homens e mulheres por meio da romantização de desejos e afetos; e, por outro lado, a dinâmica da hierarquia, do confronto e da exclusão, sustentada pelo capitalismo afetivo” (Vasallo, 2022, p. 82). A monogamia não é, portanto, um detalhe na estrutura de violência e exclusão da sociedade em que vivemos. Antes, ela é um dispositivo central, sem o qual não há como funcionar nossa cultura.
13. Los valores que el mercado considera importantes no son los cívicos o los morales, sino solamente los de cambio. En el mundo de la libre competencia la sociedad queda reducida a un organismo compuesto por individuos que han roto los vínculos sociales y comunitarios; no son individuos solidarios ni socializados, sino átomos dispersos y aislados cuyo contacto social se produce gracias al mercado. No se relacionan como personas ni como ciudadanos, sino como comerciantes y hombres de negocios (Cf. Rico-Palacio, 2019, p. 157).
14. Grifo nosso.