Publicado em: Aoristo – International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Por: Bianca dos Santos Damasceno, Doutora em Filosofia pelo PPGFIL-UERJ e Sócia-Diretora do BSDH Organização e Comunicação de Ideias LTDA
DOI: https://doi.org/10.48075/aoristo.v6i1.31563
Palavras-chave: Byung-Chul Han, infosfera, mundo-das-não-coisas, psicopolítica
RESUMO
Com base na visão crítica do filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, de que a ordem digital está descoisificando o mundo ao informatizá-lo, o artigo propõe uma reflexão sobre os riscos da migração humana para a infosfera ou para o mundo-das-não-coisas. Em tal universo, somente as informações digitais prevalecem, circulando ininterruptamente, surpreendendo, excitando, e, com isso, inaugurando uma nova forma de controle social. Pelas vias desse tipo de comunicação de massa, o virtual se impõe aos fatos, relativizando a relação com verdade e verificação e, consequentemente, com democracia, memória e história. A psicopolítica, sistema de poder hegemônico atual, é a quem interessa essa manobra do psiquismo humano pela contínua positividade estimuladora, que visa transformar cidadãos em meros phono sapiens jogadores de uma ‘realidade’ gamificada. Por isso, o momento exige debate a respeito dos limites permitidos às tecnologias e à inteligência artificial, pois se passam a servir de sinônimo à anulação do mundo-das-coisas é porque nos ameaçam com a perda do mundo como tal.
Palavras-chave: Byung-Chul Han. Infosfera. Mundo-das-não-coisas. Psicopolítica.
ABSTRACT
Based on the critical view of South Korean-born philosopher, Byung-Chul Han, which establishes that the digital order is deobjectifying the world by computerizing it, the article proposes a reflection on the risks of human migration to the infosphere or to the world-of-non-things. In such a universe, only digital information prevails, circulating uninterruptedly, surprising, exciting, and thus, inaugurating a new form of social control. Through this type of mass communication, the virtual world imposes itself on the facts, relativizing people’s relationship with truth and verification and, consequently, with democracy, memory and history. Psychopolitics, the current hegemonic power system, is the one interested in this maneuver of the human psyche through continuous stimulating positivity, which aims at transforming citizens into mere phono sapiens players of a gamified ‘reality’. Therefore, the moment demands a debate about the limits allowed for technologies and artificial intelligence because if they start to serve as a synonym for the annulment of the world-of-things, they threaten us with the loss of the world as such.
Keywords: Byung-Chul Han. Infosphere. World-of-non-things. Psychopolitics.
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Sua casa é uma orquestra eletrônica, e você é o condutor. Com um simples movimento e comandos falados, você pode regular a temperatura, a umidade, a música e a iluminação. Em uma tela transparente você folheia as notícias do dia, enquanto seu guarda-roupas automatizado lhe fornece um terno recém-engomado porque seu calendário registra um compromisso importante para hoje. (…) Seu computador central sugere uma série de tarefas domésticas para seus robôs de serviço, e você concorda com todas as sugestões. (…) Talvez você leve outra maçã na saída, que você come no banco de trás do seu carro enquanto ele o leva para o trabalho.
SCHMIDT, E. & COHEN, J.
(citados por Byung-Chul Han em Não-coisas: reviravolta do mundo da vida, 2022-a, p.19)
Enquanto a casa e o carro do futuro nos chegam por um lado, mais uma livraria desaparece do nosso universo urbano por outro. “Hoje, a gente não tem mais tanta loja física. As lojas virtuais estão acabando com tudo” (PERUCCI, 2023). Eis o desabafo da funcionária (que perdeu seu emprego e preferiu não se identificar) da Livraria Galileu, no bairro da Tijuca, fechada em dezembro de 2022, após 30 anos de atuação na cidade Rio de Janeiro. O motivo do encerramento teria sido a dificuldade de competir com as vendas on-line. Depois da descontinuidade em Ipanema e na Tijuca, cariocas torcem para que a unidade do Largo do Machado consiga resistir. O que significa perder mais um ambiente como esse num bairro do país? O que pode estar em jogo? E por que isso nos aponta para uma reflexão mais complexa? As livrarias físicas são muito mais do que estabelecimentos comerciais em que livros são vendidos. Elas são a representação de uma cultura local que se manifesta tanto na busca singular e silenciosa diante de prateleiras, quanto nas arenas de debates, pontos de encontros e diálogo entre gerações numa atmosfera onde o saber se mostra espacial, tangível e material. No caso da Galileu, vê-se isso em depoimentos como o do Sr. Carlos Rodrigues, de 78 anos: “Sempre frequentei a livraria e sempre comprei livros pro meu neto” (Idem, 2023). A filha, Clarissa Souto, hoje jornalista e com 45 anos, confirma: “Papai sempre estimulou a leitura na gente. Ele é frequentador de livrarias e bibliotecas. A Galileu faz parte da memória afetiva da Tijuca, (…) da vida cultural da cidade. É uma pena” (Idem, 2023). Nesse sentido, Danielle Paul, presidente da AEL/Associação Estadual de Livrarias do Rio de Janeiro, joga luz sobre a situação, dizendo que o fechamento de livrarias em qualquer momento é motivo de alerta social. “Quando um espaço como esse fecha, acho que o bairro perde o que eu pensaria como um espelho em textos” (Idem, 2023). A perda deste espelho, a qual Paul se refere, fala do prejuízo identitário, cultural e simbólico, até então manifesto no Sr. Carlos Rodrigues, em sua filha Clarissa, em seu neto, em toda e qualquer comunidade repleta de cheiros, sons, gostos, cinestesia e topografia que só a experiência da vida real pode dar. Ou seja, o inevitável avanço das tecnologias digitais, ao adentrarmos o século XXI, exige, ao mesmo tempo, uma reflexão a respeito dos danos que a informatização da vida pode trazer, que precedentes ela pode abrir, que agentes estão no comando de tal expansão e que limites se fazem imprescindíveis.
Sabemos que o deslocamento de comércios e serviços, trocas e relações, em geral, para o meio remoto, recebeu grande influência por parte do que vivemos a partir da pandemia da covid-19. O confinamento impôs, abruptamente, a necessidade de aceleração da migração para o espaço cibernético. Contudo, talvez não tenhamos dado a devida atenção ao que poderia, e ainda pode, estar em jogo na perda de nossa vida efetiva. Isso porque, a extinção de realidade física nas suas mais variadas expressões, em benefício de uma franca ascensão da realidade virtual, torna cada vez mais evidente o perecimento do mundo das coisas concretas. Para o filósofo sul coreano, Byung-Chul Han, a ordem digital está descoisificando o mundo ao informatizá-lo (2022-a, p. 11). Em seu livro Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida, Han afirma que as “coisas” estão desaparecendo, sem que disso nos demos conta. Estamos, segundo Han, passando a viver na infosfera ou no mundo das não-coisas, em que a ‘comunicação’ e a ‘informação’ nos dominam, nos inebriam e provocam a dissolução progressiva do contato com o mundo real. Estamos perdendo, cada vez mais, a história e a memória, importando-nos apenas com meros armazenamentos de dados que servem para a produção contínua de estímulos. Isso, além de nos distanciar da preocupação com a verdade factual, nos arranca da relação com tudo o que seja ritualístico, discreto, trivial ou contemplativo (Cf. HAN, 2022-a, p. 8-10). Em outros termos, com as “informações” passando a ser as “não-coisas determinantes”, a vida humana vai deixando de ter consistência ontológica e vai ganhando eficácia emancipatória. Na verdade, isso se dá, segundo o filósofo, por meio de um movimento paradoxal em que a própria hiperinflação de ter coisas conduz a uma indiferença, deslocando o interesse de consumo das coisas, propriamente ditas, para o consumo da informação sobre as coisas. Obcecados por informações e dados do universo digital, vamos nos desligando do mundo real e factual.
Agora produzimos e consumimos mais informações do que coisas. Ficamos totalmente intoxicados com a comunicação. As energias libidinosas se desviam das coisas e ocupam as não-coisas. A infomania é o resultado. Todos nós nos tornamos infomaníacos. Desapareceu o fetichismo das coisas. Estamos nos tornando fetichistas de informação e dados. (…) A informatização do mundo transforma as coisas em infômatos, ou seja, atores do processamento de informações. (…) “O carro fala com você, informa-o ‘espontaneamente’ sobre a condição geral dele (…), dá conselhos e toma decisões, é um parceiro em uma negociação abrangente sobre como viver […]”.
(HAN, 2022-a, p. 14-15. Na citação sobre o carro, o autor se refere a BAUDRILLARD, J. Das Andere selbst – Habilitation. Viena, 1994, p. 11).
Mergulhados na descontinuidade do ‘mundo’ das não-coisas, vamos deixando de ser narrativos e passando a ser, cada vez mais, aditivos. Nosso simbolismo vai se esvaindo na superficialidade imagética e digital rumo à fragmentação da vida, que passa a ser vivida sem contexto, sem crítica, sem aprofundamento… organizada, sobretudo, à luz do toque dos dedos ou do comando de voz, da encenação performática e do apelo à gamificação. Ganha espaço o encorajamento ao engajamento, às curtidas, ao séquito. Nesse sentido, o ritmo acelerado com que tudo deve circular, faz com que as opiniões (sobre qualquer tema) não tenham compromisso com os fatos e com a verificação, pois o que vale é o acesso e o compartilhamento rápido da informação produzida com base no ‘surpreender ininterrupto’. Contudo, é justamente quando orientados pelo ‘jeito smart’ de nos comunicar é que vamos colocando em risco o que mais nos superioriza em relação à inteligência artificial: a nossa dimensão afetivo-analógica; esta que nos situa como seres abertos, “lançados em um mundo dis-posto” e em comoção, qualificando-nos como sujeitos do pensamento (Cf. Han, 2022-a, p. 71). Como nos lembra Han, diferente de nós, “a inteligência artificial é apática, quer dizer, sem pathos, sem paixão. Ela [apenas] calcula (…), é sem mundo” (Idem, p.77-78, chaves nossas). Portanto, na esfera das não-coisas ditada pela ordem tecnonumérica – “sem história e sem memória” -, vamos enveredando por um cotidiano vigiado e controlado algoritmicamente numa espécie de ‘prisão inteligente’, em que “as pessoas perdem cada vez mais seu poder de ação, sua autonomia” (Idem, p. 18-20). Consequentemente, perdem as relações pois, para Han, a infosfera exacerba o egocentrismo, deslocando o outro para o papel de produto de satisfação das nossas pseudonecessidades.
O desaparecimento do outro é na verdade um evento dramático. Mas isso acontece de forma tão imperceptível que nem mesmo estamos propriamente cientes disso. O outro como mistério, o outro como olhar, o outro como voz desaparece. O outro, roubado de sua alteridade, naufraga em um objeto disponível e consumível. O desaparecimento do outro também afeta o mundo das coisas. As coisas perdem seu peso próprio, sua vida própria e sua vontade própria (HAN, 2022-a, p. 97).
Em outros termos, a infosfera funciona como um labirinto de espelhos, cortado por corredores escuros e erráticos, em que a única face que se mostra para todo lado é a “face de Narciso” do seu habitante. Nesse sentido, em Agonia do Eros, Han já havia alertado para o fato de que a retirada da presença do outro faz com que o entorno seja percebido como “sombreamentos projetados do si mesmo” (2017, p. 10). Partindo da e retornando à autoimagem, sem a mediação de coisas concretas e dos contornos que a convivência exige quando há alteridade, o ego narcísico fica vulnerável a todo tipo de prejuízos que somente na relação com o outro – pelo amor, pela amizade, pela troca e pelo aprendizado – se é capaz de evitar. Podem estar aqui, para o filósofo, muitas das situações de patologias neuronais contemporâneas, como as síndromes de ansiedade, de pânico, bournout e depressão. Dados do Ministério da Saúde mostram que, de acordo com estudos epidemiológicos, a prevalência da depressão ao longo da vida está em torno de 15,5% no Brasil (https://www.gov.br/saude/pt-br). A síndrome de Burnout ou esgotamento – já incluída no Classificação Internacional de Doenças/CID, código de enfermidades vinculadas ao trabalho – vem acelerando o número de concessões de auxílio-doença pelas empresas; entre 2017 e 2018 o crescimento teve saltos que pularam de 115% para 421% no período (CAVALLINI, 2020). A partir da pandemia, o quadro só se agravou, especialmente entre os jovens e os profissionais que passaram a usar a modalidade home office em seu cotidiano, ficando mais tempo off para a realidade ao redor e on para a instância virtual (Cf. CORSINI, 2022). Tais desequilíbrios revelam o quanto o culto ao ensimesmamento em prol de produtividade e performance individual pode servir de caminhos para quadros patológicos como os acima citados. Em seu Sociedade do Cansaço, Han aponta que esse tipo de situação “irrompe no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder” (2015, p. 29).
Por outro lado, e ao mesmo tempo, vale lembrar que o culto ao autocentramento egóico também se revela em sua expressão violenta e incapaz à diferença. Vagando pelo “não-mundo”, sem-coisas e sem-outro, o narcisista acaba “afogando-se em si mesmo” (HAN, 2017, p. 10), mas nem sempre implodido. Em alguns casos, ele explode, acha-se no direito de impor sua forma de pensar, passando por cima do outro e degenerando o laço social por meio da exacerbação de preconceitos históricos e estruturais. É o que acontece, por exemplo, com o aumento de grupos extremistas e disseminadores de ódio de toda ordem, na internet. Levantamento do Brasil de Fato (MOTORYN, 2022) mostra, por exemplo, uma “onda neonazista” espalhada pelo país nos últimos anos. Pesquisa realizada pela antropóloga, Adriana Dias, mostra que houve um aumento percentual desses grupos de 270,6%, entre 2019 e 2021, somando mais de 500 núcleos extremistas com teor nazista no país, podendo reunir até 10 mil pessoas como adeptos. Grave se considerarmos que o Brasil está em sétimo lugar no ranking sobre nazismo na internet, segundo a organização não-governamental SaferNet (Idem, 2022). Junto a isso, impossível não perceber o aumento da violência contra as mulheres por aqui. O relatório do Gabinete de Transição Governamental mostrou que durante o primeiro semestre de 2022, o Brasil teve recorde de feminicídios, acumulando cerca de 700 casos no período. O aumento é notório durante os quatro anos de (des)governo bolsonarista: 1.229 feminicídios em 2018, 1.330 em 2019, 1.354 em 2020 e 1.341 em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (NITAHARA, 2023). Nessa linha, vemos movimentos como a “machosfera”, grupo que prega a superioridade dos homens sobre as mulheres. Iniciado nos Estados Unidos nos anos de 1980, e agora conectados on-line, os adeptos manifestam nas redes a sua misoginia, de forma cada vez mais agressiva. A falta de presença olho-no-olho e o estímulo ao ódio por parte de apoiadores, permitem a sensação de que tudo é possível e impunível, como o caso do influencer e “coach da masculinidade”, o brasileiro Thiago Schutz, que chegou a ameaçar de morte a roteirista Lívia la Gatto, além da feminista Bruna Volpi, por ironizarem os absurdos que ele divulgava em seu canal (YAMAGUTI, 2023). É muito mais fácil a propagação desse tipo de brutalidade quando “se conta cada vez menos” com o mundo real. Até porque, o escandaloso, o bizarro e o inventado são muito mais surpreendentes e, portanto, causam muito mais engajamento nas redes sociais. Por isso, a punição não entra no radar das próprias empresas detentoras dessas mídias, uma vez que para elas a regulação não é conveniente.
É preciso considerar o quanto antes: perder o mundo das coisas é perder o mundo como tal. Mundo, como definiria a teórica política alemã, Hannah Arendt, enquanto “artifício humano edificado” e, ao mesmo tempo, enquanto “espaço intermediário entre nós”. Das muitas possibilidades de compreender a polissêmica noção de “mundo” na obra de Arendt, vale destacarmos e relembrarmos esses dois recortes que tão bem dialogam com a preocupação de Byung-Chul Han em seus apontamentos acima, sobre a nossa entrada na infosfera. Ao pensar o “artifício humano edificado” (ARENDT, 2017, p. 169), Hannah nos apresenta o mundo como a realidade constituída por mãos humanas que se doa como fonte de segurança e estabilidade, perenidade e mediação. Nesse sentido, são as “coisas” – sólidas e reais – que nos fazem, portanto, experimentar o ‘mundo’ como morada objetiva e duradoura, materializada por meio de objetos de uso, monumentos, peças, utensílios, regras, documentos, instituições… nos situando e nos dando condição de lembrança, convívio e narração. O mundo é, concomitantemente, o “espaço intermediário entre nós” (ARENDT, 2008, p. 11), o lócus histórico transcendente que abriga a jornada de cada humano na Terra (Cf. ARENDT, 2017, p. 216), antecedendo-o ao nascer e sucedendo-o ao morrer, sendo a própria manifestação da singularidade de seres únicos e a pluralidade das diferenças que precisam de “teia relacional” para viver (Cf. ARENDT, 2017, p. 217-233). Daí ser o termo entre tão propositivo para conceituar tal vocábulo, uma vez que não podemos entender “mundo” como mero somatório de pessoas que nele habitam. Nas palavras de Arendt: “… o mundo e as pessoas que nele habitam não são a mesma coisa. O mundo está entre as pessoas” … é propriamente “esse espaço intermediário…” (2008, p. 11). Mundo é fenômeno que se dá, portanto, sempre “em reciprocidade”; “em meio a” e “junto de”…
Priorizar o mundo enquanto ‘realidade constituída’ e ‘espaço intermediário’ é, dentro do contexto aqui abordado, não renunciar ao protagonismo humano diante da inteligência artificial, entendendo-a como mais uma dentre as tantas criações desse artifício edificado por nós e só aceita mediante o compromisso com a civilidade. Já enveredarmos pela infosfera sem debatê-la, em termos éticos e demarcatórios, significa uma escolha pela passividade e pela abdicação de nossa vontade livre e racional diante da possível manipulação dos algoritmos como arma de proporções ainda incalculáveis. Nesse sentido, a seriedade com que Hannah Arendt nos apresenta a ideia do que seja “mundo” deixa clara a importância de focarmos no que Byung-Chul Han está denunciando como perda, tanto das coisas propriamente ditas, quanto da alteridade que dá às coisas os sentidos que elas têm, no seio da cotidianidade. O mundo como solo cultivado pelo e para o nosso bem viver em coletividade significa a garantia da manutenção de nossa condição humana, enquanto convivência e laço. Sem a mediação das coisas objetivas e sem a interpelação do outro, deixamos de ver o mundo como “lar”, como “domicílio” e passamos a ser habitantes do “não-lugar” onde regras, mecanismos de arbitragem, limites, respeito e deferência à pessoa humana podem facilmente se esfacelar. Descoisificando o mundo, estamos perdendo não somente o mundo propriamente dito, mas perdendo a nossa própria humanidade. Isso porque, como nos lembra Hannah Arendt, o mundo é ‘correlato de’ e ‘condição para’ nossa existência, o que significa dizer que “só existe mundo porque existem humanos e só é possível sermos humanos porque somos mundanos” (2018, p. 36). A entrada na infosfera exige, no mínimo, que se levante essa discussão.
No centro de tal debate, não se deve esquecer, está o fato de que qualquer concepção sobre o que seja considerado “humano” ou “mundano” sempre corresponderá aos interesses do sistema hegemônico produtor do poder-saber vigente em cada época, como já nos ensinou Michel Foucault [1926-1984]. Segundo ele, “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (1997, p. 89, grifos nossos). Dessa forma, é crucial perguntar: qual é o sistema hegemônico no qual a “infosfera” é fabricada? A partir daí, dentro de sua estratégia complexa de poder, que tipo de humanidade se quer forjar e qual o sentido do perecimento do mundo real em prol da virtualidade das coisas? Os tempos atuais são conduzidos, predominantemente, pelas ambições do capitalismo neoliberal, que visa muito além do controle das massas pela força bruta. O domínio almejado, em nossa época, se dá, principalmente, pela compulsão e pelo vício. Assim sendo, a porta de entrada desse mecanismo de controle não se faz pela opressão de nossa estrutura física, mas pela captura de nosso psiquismo. Descola-se o foco de atuação no bio (realidade concreta) e parte-se a operar no psi (esfera sutil). Em seu Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2018), Han dedica-se a mostrar o quanto o foco do sistema que antes agia preponderantemente sobre o corpo, passou a agir, especialmente a partir do final do século XX, sobre a psique humana. Valorizando tudo o que nos havia sido entregue pelas pesquisas de Foucault sobre o poder disciplinar [século XVII] e a biopolítica [século XVIII], Han aponta que o neoliberalismo não abandona totalmente os ditames dos séculos anteriores, mas inaugura uma nova linha de comando, que em sua análise, será muito mais eficaz. No poder disciplinar, o domínio era centrado no corpo, que, visto como máquina, devia ser adestrado, disciplinado e domesticado (Cf. FOUCAULT, 1997, p. 131-132). Paralelamente, a biopolítica centrava sua força de governança sobre a espécie, impondo uma série de processos reguladores da população, normatizando a vida desde o nascimento, manutenção e longevidade, até o controle da mortalidade (Idem, ibidem). O biopoder, nesse sentido, fez-se política de coerção externa, de ordenamento e policiamento de corpos em seus espaços de circulação. Por isso mesmo o panóptico – ou a prisão em forma de anel, dividida por celas com sua torre central de vigilância, obra do jurista inglês Jeremy Bentham (1785) – foi o modelo perfeito de efetivação de tal poder. As representações sociais vigentes ao longo do século XX seguiram esse rigor de patrulha e monitoramento ininterruptos: cadeias, hospitais, fábricas, escolas, asilos, manicômios etc. O biopoder foi um sistema que agiu diretamente na dimensão biológica, com regulação da vida e da espécie humanas, transformando-nos em sujeitos-funções ou peças de engrenagem da produção. A sua voz de comando foi negativo-coercitiva: Tu deves! E a sua mais importante fabricação foram as “subjetividades obedientes”.
Com o neocapitalismo, essa voz muda de comando e de tom, segundo Byung-Chul Han, fazendo com que a impositividade do sistema se torne bem mais engenhosa. Trata-se da psicopolítica. A base dessa nova organização social deixa de ser calcada na negatividade coercitiva, passando a ser conduzida pela positividade estimuladora: Tu podes! Na verdade, a psicopolítica incute subliminarmente nessa voz de comando a seguinte consigna: Tu deves poder! Ou seja, “…o inconsciente social do dever troca para o registro do poder… porém, não cancela o dever” (HAN, 2015, p.25). Para tanto, o neoliberalismo mira no que está além da dimensão biológica, agindo no psiquismo e manipulando a noção de liberdade do indivíduo (no fundo, opressora), como seu eixo principal: o “poder põe de lado sua negatividade, passando-se por liberdade” (HAN, 2018, p. 26). A positividade do sim, agora, não se vale de coerção externa direta e punitiva, mas ao contrário, aposta no estímulo, na motivação e nas emoções de um “eu” que lidera a si mesmo. A força exercida pelo sistema será feita através da ‘tirania da exposição’, unindo as noções de ‘vida e mercado’ e, a partir daí, fazendo com que todos sejam ‘auto empreendimentos’ que devem se vender e competir uns com os outros. Tais ‘sujeitos-concorrentes’ deixam, portanto, de ser vigiados de forma repressora para se exporem voluntariamente. Como empresários de si (HAN, 2015, p. 23) precisam se publicizar enquanto mercadorias a serem curtidas e consumidas. No novo contexto social, passam a estar em alta o empreendedorismo, o empoderamento, o desempenho, o exibicionismo e o entretenimento. O panóptico da era do biopoder, conduzido por ‘olhares que deviam ver sem serem vistos’ (FOUCAULT, 1999, v.d.) e que, portanto, vigiava a todos sem que ninguém interagisse com ninguém, é substituído pelas mídias digitais que se tornam a arena de visibilidade espontânea, em que todos se veem, se comentam, se acompanham, doando seus dados mais íntimos, sem qualquer resistência: agora, “cada um é panóptico de si mesmo” (HAN, 2018, p. 58). Os modelos sociais opressores de patrulha e monitoramento que antes estruturavam escolas, hospitais e presídios, agora são substituídos pela informatização – com cores, sons, sensorialidade e virtualidade das telas – presentes em academias fitness, bancos, shopping centers… que inspiram a governança da modernidade tardia.
A maior fabricação que o sistema neoliberal deseja instituir são as “subjetividades performáticas e narcísicas”, de baixíssima noção cidadã, capturadas pela ditadura do idêntico e tornadas facilmente manobráveis pela via da excitação. Subjetividades que devem ser convencidas de que são avatares em metaversos…capazes de obter os mundos que quiserem, sendo nestes o que quiserem ser… Daí, a sentença de Han sobre a perspicácia da psicopolítica: “Muito mais eficiente é a técnica de poder que faz com que as pessoas se submetam ao contexto de dominação por si mesmas. Em vez de tornarem-se obedientes as pessoas se tornam dependentes” (2018, p. 26). É aqui que a ‘comunicação’ e a ‘informação’ controladas pela indústria das mídias digitais ganham importância e se tornam decisivos recursos de poder do capital. Segundo Han, como já sinalizado anteriormente, no mundo-das-não-coisas cabe à ‘comunicação’ e à ‘informação’ a tarefa de nos arrebatar e ensejar a dissolução progressiva do contato com o mundo real, fazendo com que percamos a alteridade, a relação com a verdade, com a memória e com a história, uma vez que vamos nos intoxicando pela infomania. O fetichismo das coisas é substituído pelo fetichismo das informações comunicadas na esfera digital que geram uma sucessão desenfreada de estímulos. Dessa forma, para o filósofo, a informatização do mundo transforma as coisas em infômatos que, por fim, tornam-se atores do processamento de informações que ditam nosso ‘modo de viver’, ‘o que devemos escolher’ e ‘como devemos nos comportar’. Com o derretimento ou a evaporação do mundo das coisas, a infosfera avança sem resistência, negando a realidade factual e criando outra realidade; a que lhe for mais conveniente (Cf. HAN, 2022-b, p. 25-46). Em uma entrevista à Revista Gama, Ronaldo Lemos – advogado, professor, especialista em tecnologia e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro/ITS – diz reconhecer que, apesar de ver na tecnologia um caminho de oportunidades, há desafios a serem tratados logo. Como exemplo, mostra os impactos da inovação trazida pela Rede TikTok:
Ele (o TikTok) ignora completamente quem você segue ou deixa de seguir, ele simplesmente olha para tentar entender os seus interesses, e com base neles coloca qualquer coisa que capture a sua atenção da maneira mais forte possível. (…) Ele ignora seu círculo, você pode até ir para uma outra aba e conseguir enxergar esse círculo, mas a aba principal do TikTok é a empresa decidindo. Olhando tudo que está acontecendo no mundo e falando “o Ronaldo vai querer ver isso aqui com base nas preferências que eu já detectei dele”.
Isso é problemático porque, bem ou mal, esse círculo social que a gente tem nas redes sociais é ainda um fenômeno de coletividade, um resultado do coletivo, de uma vida coletiva. E o que essa mudança do TikTok acaba promovendo é você não ter conexão com mais ninguém. É você sozinho ali e a empresa, o algoritmo te mandando conteúdo. Você se conectando só ao algoritmo, não necessariamente a uma pessoa ou um grupo. Isso provoca, na minha visão, um individualismo muito profundo. As pessoas que já estão hoje muito atomizadas, desagregadas, sozinhas, vão ter uma solidão ainda maior porque vão ser elas e o algoritmo. Isso eu acho bem complicado.
(LEMOS, 04.12.2022. Entrevista à Revista Gama)
Em paralelo à solidão, ao individualismo e ao empobrecimento dos vínculos, Lemos também chama a atenção para o fato de que a compulsão pelo uso do aplicativo possui outro impacto sobre a saúde mental: a ansiedade. Por trazer um conteúdo divertido, impactante, “parece ser dancinha e outras coisas, mas é você assistir a um vídeo e ficar ansioso… O TikTok tem a capacidade de mexer não só com as nossas preferências conscientes, mas também as inconscientes” (Idem, 2022). Mais uma vez, vale o questionamento sobre que tipo de “humano” se quer forjar na psicopolítica, e qual o sentido da substituição do “mundo real’ pela “virtualidade das coisas” nessa estratégia complexa de poder. Afinal, não só a saúde mental do indivíduo passa a sofrer danos, mas a formação de um tipo de ser humano que atuará na coletividade e ocupará papéis sociais dos mais diversos, inclusive em instituições garantidoras dos interesses da cidadania, da justiça e do bem estar social. Em seu Infocracia: digitalização e a crise da democracia, o filósofo lembra que a democracia em seu início tinha por base o pensamento e a racionalidade, o que significa dizer que estava na cultura livresca a sua mídia principal. Nos nossos tempos, entretanto, o livro foi substituído pela mídia eletrônica, produzindo uma midiocracia que, muitas vezes, trabalha contra a democracia (HAN, 2022-b, p. 25-27). “Na midiocracia, também a política se submete à lógica das massas. O entretenimento determina a mediação de conteúdos políticos e deteriora a racionalidade” (Idem, p. 28), tornando-nos cada vez mais imaturos e incapazes de diferenciar o que é realidade de ficção. O “infoentretenimento” que começa em telas e monitores, e avança na propagação viral das informações via touchscreen, vai centrifugando a nossa esfera pública, fazendo com que o tecido social democrático se decomponha sem objeção.
Nesse modo de governar em que o infoentretenimento midiático digital é usado como a maior arma para se estar no comando – infocracia -, o tempo do pensamento não existe. Ou, nas palavras de Han: “Na sociedade da informação, simplesmente não temos tempo para a ação racional. A coação da comunicação acelerada nos priva da racionalidade” (Han, 2022-b, p. 36). No lugar do tempo de retirada para a atividade do pensamento, age sobre nós, segundo Han, a comunicação afetiva com seu efeito estimulante, contínuo e compulsivo. No centro desse tipo de abordagem, está o apelo à emoção em detrimento do que procede à razão. “Hoje, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. A psicopolítica neoliberal se ocupa da emoção para influenciar ações sobre esse nível pré-reflexivo”. (HAN, 2018, p. 66-68). É por isso que fake news ganham mais atenção e mais adesão do que fatos concretos. Portanto, com a infantilização das cabeças, a perda acelerada do tempo para o pensamento, o apelo desenfreado às emoções e o controle de todos os nossos dados pessoais, fica fácil para o capitalismo da era digital ir diluindo o ‘mundo das coisas’. Pela perda do mundo, autonomia passa a ser emancipação egóica e liberdade passa a ser mera independência do laço social; ambas exploradas e manobradas pelo dataísmo. Um dos melhores exemplos dos tempos atuais sobre as consequências desse tipo de dominação, citados por Byung-Chul Han em livros de sua obra, trata da figura do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o caso da empresa de dados britânica, Cambridge Analytica. Observando o que acontece a partir desses eventos, que transformaram campanha eleitoral em guerra de informações virais e tuítes, é possível perceber o nível de risco que estamos correndo, mesmo em democracias que, até então, eram consideradas maduras e estáveis.
A empresa de dados britânica Cambridge Analytica se gaba de deter os psicogramas de todos os cidadãos estadunidenses adultos. Após a vitória de Donald Trump nas eleições de 2016, declarou triunfante: “estamos convencidos que nossa abordagem revolucionária da comunicação impulsionada por dados teve um papel muito decisivo para a extraordinária vitória nas eleições do presidente eleito Donald Trump”. (…) Na focalização micro, os eleitores não são informados sobre o programa político de um partido. São, em vez disso, usadas, com propósitos manipulativos, propagandas eleitorais, não raro fake news, enquadradas em seu psicograma. Centenas de milhares de variantes de uma propaganda eleitoral testadas quanto às suas eficiências. Esses dark ads, anúncios sombrios, otimizados pela psicometria, constituem um perigo para a democracia. Todos recebem uma notícia diferente, pelo que a esfera pública fica fragmentada. Grupos diferentes recebem informações que, não raro, se contradizem. (HAN, 2022-b, p. 39-40).
Para Han, estamos adentrando numa perigosa era em que os big data passam a instalar uma nova ordem social. Nesta, o panóptico digital que já podia cruzar os dados para influenciar nossos comportamentos, agora passa a se estabelecer como ban-óptico, ou seja, um dispositivo que identifica até mesmo os comportamentos indesejáveis, podendo alterá-los, dirigi-los ou bani-los do sistema. “O panóptico clássico serve para disciplinar; os ban-ópticos garantem a segurança e a eficiência do sistema” (2018, p. 91). Nesse sentido, observando o caso americano, Han nos alerta que as “dark ads contribuem com a cisão e a polarização da sociedade e envenenam o ambiente discursivo”, inviabilizando a esfera pública (2022-b, p. 40). Com esse nível de interferência sobre a população, nossos cuidados em relação ao avanço da inteligência artificial e dos recursos das redes não podem ser negligenciados. Por isso importa a pergunta: em que aspectos o esfacelamento do mundo-das-coisas facilita a perda da constituição de sujeitos pensantes, a perda da alteridade, da coletividade, do bem comum, das instituições, da democracia…? No pano de fundo do que se apresenta como simples e inevitável progresso tecnológico, debater limites e regras no avanço da informatização tem a ver com essa questão. A sociedade digitalizada do desempenho e da compulsão, pelo que nos aponta Byung-Chul Han, pode se mostrar uma ameaça por precisar de uma “democracia de espectadores e consumidores” para levar adiante um projeto de poder em que ‘votar e comprar’ e em que ‘Estado e mercado’, sejam a mesma coisa (2018, p. 22 e 87). A tecnocomunicação infomaníaca e seus infômatos nos colocam o desafio de lutar para não nos tornarmos todos meros Teletubbies.
Cabe apenas registrar, no entanto, que nesse ‘mundo’ diluído em ‘infosfera’ a comunicação e a informação, tidas como armas de manipulação fundamentais, são as grandes vítimas do sistema por perderem os seus significados originais. Lembremos que a palavra comunicação, derivada do latim communicare – antepositivo comunic, communïco, as, ävi, ãvi, ãtum, ãre (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 781) – traz por sentido primeiro “tornar comum”; “partilhar”; “repartir”; “associar”; “conferenciar”, implicando, portanto, vínculo e laço. Segundo Barbosa e Rabaça, “comunicação significa estar em relação com, representando a ação de pôr em comum, de compartilhar ideias, sentimentos e atitudes”, identificando-se, assim, com o “processo social mais básico: a interação” (2001, p. 155-157). Vê-se que em sua acepção mais originária, a comunicação é o que viabiliza a existência humana, uma vez que comunicar é estabelecer comunhão entre nós. Dessa forma, sem comunicação não pode haver simbolização, não pode haver cultura, não pode haver história… não pode haver, enfim, ‘sentido comum’. É pela comunicação que nossa diversidade se afina, tornando possível a “paradoxal pluralidade de seres únicos” que somos (ARENDT, 2017, p. 218). Portanto, quando nos referimos a esse conceito em seu aspecto mais fundante, temos que partir da recordação de que comunicação é sinônimo de coexistência; território do entre humanos. Isso posto, sabemos que o problema se situa quando nos voltamos para o que passou a se designar como ‘comunicação de massa’, aquela que transforma a sociedade em um aglomerado indiferente ao interesse comum. Como já nos sinalizara Arendt, o que mais caracteriza homens e mulheres de massa são o isolamento e a falta de relações sociais normais; portanto, individualização, atomização e bloco populacional desestruturado (Cf. ARENDT, 2012, p. 438-439; 446). Na perspectiva comunicacional encurtada em que a vida passa a ser um smartgame desvinculado de ‘coisas’ e ‘pessoas’ do ‘mundo real’, o cerne da comunicação não é mais o “comum em nós”, mas a “informação”. Vale lembrar, contudo, que este último conceito também sofre deterioração, uma vez que, originalmente, informação – do latim informatio, onis (HOUAISS e VILLAR, 2003, v.d.) – é a ação de “dar forma”, “formar”, “delinear”, “esboçar”, “conceber ideia”, ao tratar de “fato de interesse geral a que se dá publicidade” (Idem, 2003, v.d.). Nesse sentido, é a ação de trazer ao conhecimento público ocorrências e acontecimentos como resultado de um processo de apuração, verificação e análise. Significa dizer que, logo em primeira ordem, “informação” se vincula à questão da “verdade factual” (Cf. ARENDT, 2016, p. 282-325); aquela ligada a fatos, números e experiências incontestes que dizem respeito a situações e circunstâncias testemunhadas na realidade e que nos permitem produzir civilização, história e memória.
O problema é que na era da “economia do compartilhamento”, a informação vem perdendo o seu sentido primeiro de se fazer ‘fato levado a conhecimento do público’ com vistas à ‘concepção de ideia ou formação de opinião’ para o exercício de cidadania. Agora, informação faz-se a própria peça publicitária sem, necessariamente, qualquer vinculação com a facticidade, ficando apenas na superficialidade de uma perspectiva comercial de obtenção de lucros sobre consumidores, à velocidade da luz, tornando-se a mais valiosa das mercadorias. Daí ser a aceleração e o instantaneísmo os aspectos que deterioram a ‘informação’ [dado mais avaliação], reduzindo-a ao papel de simples ‘dado’ [mensagem sem avaliação] (BARBOSA e RABAÇA, 2001, p. 389). Em nome da conveniência e da diversão, tudo o que compartilhamos por meio dos infômatos/informantes – smartphone, smarthouse, smartbed, smartcar… – nos leva a ser monitorados, manipulados e dominados por um sistema que nos quer a todos cada vez mais viciados na irrealidade pelo recuo do ‘eu pensante’ e pelo avanço do ‘ego infantilizado’. Sabemos não ser possível, simplesmente, negar a inteligência artificial, a informatização dos dados, a cibernética, as mídias digitais, as redes sociais, o dataísmo… Essa realidade virtual não é o futuro, mas sim o presente, e já atua entre nós. O que não se deve é achar que somos os Jetsons, recebendo o que nos oferecem apenas como formas de tornar a vida mais fácil e divertida. Há um projeto hegemônico em curso que precisa fabricar tipologias humanas correspondentes aos controles desejados; da mesma forma, há outras tipologias que precisam ser destruídas por não interessarem ao sistema. É sob essa perspectiva que devemos estabelecer regras para os avanços tecnológicos e conectivos da esfera virtual, afinal de contas, não é sobre avanços tecnológicos e conectivos… mas sobre forças ideológicas e regimes de poder. Ronaldo Lemos, que participou da implantação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), entende que o papel da regulação é fazer com que as oportunidades superem os riscos. Falta combinar com o sistema, diria Byung-Chul Han… Pois, não há como fingir que para a psicopolítica não mais a domesticação dos corpos, mas o adestramento da psique humana interessa, instrumentalizando a informação comunicada em entretenimento, por meio do dataísmo (Cf. HAN, 2022-b, p. 09-10). Tal adestramento representa, na verdade, a tirania por parte das corporações detentoras desses mercados que não apenas instauram o seu ideário global como discurso predominante, mas podem representar a maior ameaça à comunicação humana, em seu sentido mais puro.
Se vale entender o presente como preocupante, é para evitar que o futuro nos aponte para um horizonte de playground gamificado. Afinal, segundo Byung-Chun Han, “é tentadora a ideia de que o ser humano do futuro só jogue e desfrute, ou seja, esteja completamente sem ‘preocupação’. (…) Ele aperta botões para satisfazer necessidades. Sua vida não é um drama que lhe impõe ações, mas um jogo.” (2022-a, p. 27). Para o filósofo, este phono sapiens egocêntrico, jogador e dominado pela inteligência artificial via smartphone, só se ocupará de vivenciar, desfrutar e brincar, dizendo adeus à liberdade vinculada à ação, no sentido usado por Hannah Arendt (Cf. HAN, 2022-a, p. 28). Esta noção de “ação” que pode ser perdida, a que Han faz referência à Arendt, fala da capacidade humana de dar nascimento, promover aparição e inscrever novidade no mundo, junto e em concerto com os outros, em prol do que é comum. Uma “ação discursiva” que inaugura o improvável e o inesperado no mundo via a condição de natalidade – ao agir – e de pluralidade – ao discursar nas relações. Dito de outro modo, o sentido dessa ação é a capacidade de darmos novos começos a cada vez que agimos e de revelarmos quem somos sempre que nos comunicamos no entrelaçamento junto aos demais (Cf. ARENDT, 2017, p. 217-233). Só dessa forma somos realmente livres, ressalta Han, baseando-se na visão arendtiana, uma vez que, para Hannah Arendt, a liberdade é um atributo da ação humana no mundo (Cf. ARENDT, 2016, p. 188-220): “Os homens são livres enquanto agem – diferentemente de possuírem o dom da liberdade –, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa” (Idem, p. 199). A “liberdade” psicopolítica do phono sapiens é uma pseudoliberdade que, opressivamente, apenas manipula e inebria pelo estímulo do Tu podes! Este phono sapiens, que só joga, não inaugura nada de novo, portanto, não é livre, mas escravo. Incapaz de questionar o sistema, apenas atende aos apelos de seu comportamento adicto e de sua dependência compulsiva. Quer entreter-se e fazer-se entretenimento, sem a real liberdade da ação. Para Han, ao ser capturado pelo ‘jogo da infosfera’, tal jogador mais do que se exclui da história, ele trabalha, ciente ou não, para extingui-la. “Agir é o verbo para a história. A pessoa do futuro que joga e não age encarna o fim da história”. (2022-a, p. 28).
Os avanços da inteligência artificial e da tecnologia devem ser absorvidos, desde que não sejam ameaças à liberdade da ação, no sentido arendtiano referenciado por Han. Ser alguém é manter-se um iniciador, o que significa sinônimo de ser livre. Liberdade que cada um “é”, uma vez que, ao nascer, já se faz em si mesmo uma novidade para o mundo. “No nascimento de cada homem o começo inicial é reafirmado (…). Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade” (ARENDT, 2016, p. 216). Muitas vezes, o começo pode ser até um recomeço, uma retomada, uma persistência em algo que se considera obsoleto ou ultrapassado… A propósito, uma nova loja física da Livraria da Travessa foi inaugurada. Deu-se em 30 de março de 2023, na Avenida Graça Aranha, Centro da cidade do Rio de Janeiro. Não por acaso, recebeu por batismo o nome Travessa da Graça! A cerimônia de abertura trouxe para o público um bate-papo com autores, presencialmente. Para quem ainda goza da esfera real, foi possível sentir os livros, o cheiro do café, os semblantes e as vozes dos participantes da vida efetiva e experienciada. E assim o mundo-das-coisas insiste e resiste à infosfera… Graças a Deus! E aos humanos livres, de ação discursiva!
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