Vai um bom conselho? Heidegger, Byung-Chul Han e Chico Buarque diante das possibilidades positivas de ser-com o outro na sociedade contemporânea do desempenho

VAI UM BOM CONSELHO? Heidegger, Byung-Chul Han e Chico Buarque diante das possibilidades positivas de ser-com o outro na sociedade contemporânea do desempenho.

WANT SOME GOOD ADVICE? Heidegger, Byung-Chul Han e Chico Buarque before the positive possibilities of be-with the other in the contemporary performance-focused society.

BIANCA DAMASCENO é Jornalista, sócia da BSDH Organização e Comunicação de Ideias. Cursa doutorado em Filosofia (UERJ, Brasil). É mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade – (UVA/RJ, Brasil), pós-graduada em Gestão Estratégica de Serviços – MBA (FGV/RJ, Brasil).

 

RESUMO

Com base nas possibilidades positivas de ser-com o outro, parágrafos 26 e 27 de Ser e tempo, de Martin Heidegger, o artigo propõe uma reflexão sobre o papel de atividades de aconselhamento no contemporâneo – aqui tratadas como práticas de ‘consultoria’. Partindo do princípio de que tais atividades apresentam-se como representantes do modelo impessoal (sentido heideggeriano), levanta-se o risco de desoneração daquele que é atendido, já que objetivos podem ser considerados como previamente dados pela impropriedade mundana. Propõe-se a questão: seria possível uma abertura à reinvindicação, na qual os profissionais de áreas consultivas relativizassem os próprios mandatos mercadológicos, emancipando o outro a cuidar de si a partir de um autêntico projeto de sentido? Parte-se da ditadura psicopolítica da ‘sociedade do desempenho’, diagnosticada por Byung-Chul Han, e tem-se como contorno poético o aconselhamento de Chico Buarque em suas canções, Bom conselho e Vence na vida quem diz sim.

 

Palavras-chave: Teoria heideggeriana. Psicopolítica. Aconselhamento. Poesia de resistência.

ABSTRACT

Based on the positive possibilities of ‘be-with the other’, of Martin Heidegger’s Being and Time, paragraphs 26 and 27, the article proposes a debate over the contemporary consulting activities’ role – addressed here as ‘consulting’ practices. Supposing that such activity presents itself as a strong representation of the impersonal model (in the Heideggerian sense), the risk of exemption from the one who is attended is raised, since objectives can be considered as already determined by the worldly impropriety. We could question if an opening for vindication is possible, where the professionals in the consulting area relativized their own marketing mandates, emancipating the other to take care of themselves from an authentic meaningful project. Our base is the psychopolitics dictatorship of the ‘performance-focused society’, diagnosed by Byung Chul-Han and having the advice of Chico Buarque in his songs, Bom conselho e Vence na vida quem diz sim as the poetic outline.

Keywords: Heideggerian theory. Psychopolitics. Counseling. Resistance Poetry.

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          Que o neoliberalismo da modernidade tardia sempre nos tratou de forma imperativa – seja vencedor, seja feliz, mantenha-se saudável, faça networking… – já sabemos há tempos. Junto a essa abordagem, é possível perceber a descomunal valorização de serviços – que aqui trataremos como práticas de ‘consultoria’ – voltados a ajudar a todos na busca por tais “conquistas”. Neste artigo, propomos refletir sobre o papel dessas atividades de aconselhamento no contemporâneo, especialmente num cenário de imposta retenção do fluxo frenético da vida devido à pandemia mundial. Temos por base teórica central as possibilidades positivas de ser-com o outro, dos parágrafos 26 e 27 da obra Ser e tempo, de Martin Heidegger (1889/1976), fazendo relação com a ditadura psicopolítica da nossa ‘sociedade do desempenho’, diagnosticada por Byung-Chul Han, e tendo como contorno poético o estilo crítico e transgressor de Chico Buarque em duas de suas canções: Bom conselho e Vence na vida quem diz sim.

         Para início de conversa, vale indagar a que se refere o aconselhamento, base de tantos serviços em alta em nosso tempo e que estamos nomeando, em geral, por ‘consultoria’? Trata-se de dizer ao outro, simplesmente, o que deve fazer? Conselho é algo que se fosse bom não se daria, como afirma o dito popular? Nesse sentido, por ser conselho, é sempre desqualificador do outro e desonerador do zelo que este deve ter por si mesmo? Em outras palavras: todo conselho é sinônimo de banalização de consciência e decisão que cabe ao outro, desobrigando-o ou suplantando-o da responsabilidade por suas ações? Como primeiro passo para o aprofundamento do que está em jogo aqui, propõe-se resgatar uma lembrança e encontrar uma voz que diz… “Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil dormir que a dor não passa; espere sentado ou você se cansa, está provado, quem espera nunca alcança”. Essa foi a dica de Chico Buarque à sociedade, por meio da canção Bom Conselho, de 1972, diante do endurecimento implementado pela ditadura militar no Brasil (1964-1985) após o Ato Institucional número cinco (AI-5, de 1968), o mais rígido e violento de todos os decretos do regime. O conselho do poeta, na ocasião, extrapolava um mero ponto de vista, menos ainda intencionava livrar quem quer que fosse do exercício de reflexão e responsabilidade. Muito ao contrário, tinha o caráter de impor uma resistência pessoal que servisse de provocação e advertência aos demais cidadãos de seu país: “venha, meu amigo, deixe esse regaço, brinque com meu fogo, venha se queimar”; “faça como eu digo, faça como eu faço: aja duas vezes antes de pensar”. Era preciso, no parecer de Chico, que todos fossem “semeadores de vento em suas cidades”, que todos fossem às ruas e “bebessem a tempestade”. Ou seja, que se posicionassem em prol da liberdade na condução política democrática da nação. O que mais esperar acontecer depois desse tão nefasto Ato? Não adiantava fingir que nada estava acontecendo, não adiantava desviar o olhar para o agravamento da situação. Como se sabe, depois de muita luta, a redemocratização se fez em 1985. O tempo correu seus anos e desde esse marco para cá, as linhas históricas seguem preenchendo-se de novos desafios. O Chico Buarque de Bom Conselho foi, em 2019, ganhador do prêmio Camões, a mais importante condecoração da língua portuguesa, e se mantém resistente, chamando a atenção para as novas formas de autoritarismo que surgem a partir de uma extrema direita reacionária e neoliberal colocada pelo próprio povo na liderança do país. O bom conselho do poeta faz-se, de modo progressivo e cada vez mais urgente, de novo necessário.

         Entretanto, e com muito mais ênfase, vimos emergir durante a modernidade tardia as dicas dos digital influencers, coaches, palestrantes motivacionais, psicólogos especialistas na reprogramação da mente e consultores das mais variadas áreas a aconselhar consumidores, não mais sujeitos da coletividade, a como se portarem na “sociedade do desempenho”. Tal expressão é utilizada pelo filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han, para tratar do problema de um modelo psicopolítico que se baseia no excesso de positividade que veio destituindo trabalhadores-cidadãos e transformando-os em empreendedores de si mesmos (2015, p. 24), a partir do ideal ‘Yes, you can’! O que mostra que, no sistema capitalista do nosso tempo, o materialismo-consumista vem ditando que o indivíduo ‘pode tudo o que desejar’ e, por isso, vem exigindo que cada um se coloque como concorrente, e ao mesmo tempo, mercadoria atrativa nas vitrines das redes sociais, estando por sua conta e risco o sucesso na função de se suplantar e bater metas contínuas, nunca parando de poder. O incessante sim à positividade da psicopolítica implementado pela sociedade do desempenho excedeu os limites da negatividade da biopolítica da sociedade disciplinar, característica do século XX[1]. Entretanto, como alerta Han, aparentemente ‘livre’ para conquistar vitórias ininterruptas, o empreendedor não se deu conta do quanto tal liberdade vem agindo, paradoxalmente, de maneira repressora, fazendo-o se submeter a uma autoimposição agressiva por resultados sem fim. Para Han, essa obsessão pela superação contínua só poderia conduzir a sociedade do século XXI rumo à combustão e ao esgotamento, acompanhados de uma carga absurda de autoexigência e culpa diante de qualquer ameaça de fracasso, produzindo condições para uma espécie de “curto circuito” ou “queima de si” via patologias neuronais, síndromes e transtornos – como pânico, depressão, burnout, déficit de atenção e hiperatividade (2018, p. 10). Essa agressão sistêmica que ‘brota’ do próprio indivíduo vem representando uma espécie de guerra autodeflagrada, onde todos são senhores e escravos de si mesmos, numa corrida desenfreada por resultados em prol do giro produtivo-consumista que não se deixa interromper por nada. Nada mesmo?

         Inacreditavelmente, algo foi capaz de engasgar esse fluxo. Na virada de 2019 para 2020, surge na cidade de Wuhan/China, uma doença (COVID-19) provocada por um novo coronavírus, que se espalhou por todo o planeta, fazendo o mundo parar. Algo falou mais alto: era deter o ritmo ou morrer; e tudo foi abrupta e repentinamente freado. De repente, o toque de recolher colocou a maior parte da população dentro de casa, fazendo com que somente o indispensável funcionasse e as atividades não essenciais só pudessem seguir por home office – nações que desafiaram essa medida, pagaram caro e empilharam cadáveres. Em questão de semanas, o Estado foi chamado de volta a se colocar no centro do comando, mostrando sua ‘cara’ e seu devido papel. Nada disso representou garantia de efetiva mudança no modo de ser humano do contemporâneo em direção ao futuro. Contudo, e sem sombra de dúvida, fez aparecer o modo de ser que estávamos sendo até então. Com o surgimento da crise, os ditames bio-psico-políticos do capitalismo de nossa época puderam ser sentidos em forma de interrogação: Qual o valor da vida? Que ideologia sustenta a política pública de cada nação? Qual a força do fascismo neoliberal em prol da economia? Que vidas podem ser ceifadas no giro da produção? Que ciência é a nossa? Quem deve viver ou morrer dentro das unidades de tratamento intensivo? Quem tem o poder de ‘fogo’ para comprar equipamentos e quem terá que esperar? Que disposição tem cada governo para salvar e salvaguardar a vida de seu povo? Quanto de dinheiro se revelou ter no mundo para que a realidade de pobres e esquecidos fosse diferente, independentemente de uma pandemia? …, entre outros tantos dilemas. Tudo isso estava ali, latente na crise, enquanto se discutia a quantidade de mortes, os testes, a vacina e os possíveis medicamentos que não viriam tão cedo, os protocolos médicos, as medidas sanitárias, o pico da curva, as novas etiquetas respiratórias e de convivência… Técnicos e especialistas –  médicos, epidemiologistas, economistas, terapeutas corporais, professores de yoga, nutricionistas, administradores, psicólogos etc – foram colocados no topo do debate, dando aconselhamentos nas mais diversas áreas. Atividades profissionais que antes, em sua maioria, se dedicavam a prestar orientações sobre como escapar do grupo dos loosers e se manter no time dos winners de cada nação-mercado, agora estavam ali procurando ajudar as pessoas a sobreviverem. Diante desse cenário extremo, ficou claro o quanto o profissional de área consultiva não tem qualquer poder sobre o sujeito abordado e que o ponto mais característico da atuação de todo consultor é o fato de que este nunca consegue decretar resoluções, apenas servir de suporte a alguém que tenha, única e exclusivamente, o poder de escolha e comando de sua vida (“lave as mãos”, “não saia de casa”, “não estoque compras” – podem ou não ser seguidos). Também ficou claro o quanto a decisão de cada indivíduo faz diferença na pluralidade, tecendo de volta a verdadeira noção, tão deixada de lado no mundo atual, do que seja sociedade.

         O mais importante nisso tudo é que, mesmo estando em meio a mais radical das experiências humanas (o olhar para a finitude), cabe aos profissionais de áreas consultivas uma reflexão que está além de uma perspectiva tecnocrata e especializada. Não que dados, pesquisas, protocolos, medidas e novas práticas não sejam importantes. Contudo, vale especialmente se atentar para as questões latentes da crise e aproveitar esse horizonte de abertura para pensar nos temas ético-políticos que se apresentam. Vale se implicar numa interrogação séria se a crise que nos envolve servirá para repensarmos o modelo da psicopolítica da positividade sem limites que transforma cidadãos em peças funcionais, por sua conta e risco, sob pena de autocombustão. Em outras palavras, não basta seguir dando consulta sobre como enfrentar a crise. É fundamental questionar o modelo vigente, incluindo aí o posicionamento da própria atuação, pois o que está em jogo, agora, é a pergunta “a serviço de que, prioritariamente, está um consultor quando realiza o processo de consultoria”? E isso passa por tal campo ético-político que envolve, na verdade, a maneira de agir em todas as relações tramadas na modernidade tardia. Se o profissional está a serviço do regime dominante até aqui, compromissado com a classificação loosers versus winners, a atividade de consultoria se presta a reproduzir o que se poderia chamar de “ditadura do mercado”, conduzindo pareceres pelas lentes das injunções coercitivas do capital. Nesse sentido, as respostas para as questões iniciais aqui apresentadas seguiriam uma linha corrosiva: o aconselhamento significa dizer, simplesmente, o que o outro deve fazer? Sim, porque o que fazer já está dado ‘a priori’ pelos interesses hegemônicos. Todo conselho é sinônimo de banalização de uma decisão que cabe ao outro, suplantando-o da responsabilidade por suas ações? Ou, em outros termos, quando se atua nesse tipo de atividade, assume-se sempre a posição de desonerar o outro do zelo que deve ter por si mesmo? Sim, pois a fala do consultor é sem escuta e sem olhar para o outro. Uma fala reprodutiva de mandatos em que o outro pode até mesmo aparecer como mero objeto de produtividade; o outro pode ser visado como coisa!

         É preciso admitir, então, nesse tempo de crise mundial, uma prática de consultoria que vá além da leitura de realidades, projeção de cenários e apontamento de direções – como se modula uma atividade de aconselhamento. Precisamos de uma ação consultiva, seja em qual for a área, que interrogue o status quo da ideologia de mercado e que se coloque no lugar da estranheza. Consultoria feita por um viés capaz de articular um horizonte de possibilidades no qual o sujeito se afirme, inclusive, como resistência às exacerbações do respectivo modelo. Esse é um princípio de atuação que, além de pensar opções dentro do sistema, permite pensar o próprio sistema, questionando suas bases. Como afirma o economista, Eduardo Moreira, em entrevista à Revista Carta Capital, “esse mercado vive em um show de Truman[2]. Desde o momento que você entra, é doutrinado de uma forma fria, insensível e supostamente racional para acreditar em coisas irracionais” (PUTTI, 2019, v. digital). Por isso, é mais que possível, quando se tem criticidade e comprometimento com uma visão sócio-política, atuar profissionalmente indagando as supostas falácias que transformam interesses de mercado em dogmas inquestionáveis. Sem tanto medo de arguir esquemas tidos como verdadeiros, o consultor abre campo para que o sujeito incomode-se e desadapte-se, concedendo espaço à interpelação por novas respostas. Para Moreira, uma hora chega-se à consciência de que o “mercado não é solução de nada, ele é o problema” (Id., ibid.). Problema este com o qual todos precisamos nos ocupar, uma vez que trata-se do diálogo com o nosso mundo histórico. E o papel do consultor deve ser o de ‘semear seus próprios ventos e assumir o risco de beber tempestades’. Contudo, para se promover esse modo de agir, o consultor precisa ser alguém que não reduza o seu trabalho à mera forma de ganho. Precisa ser alguém que, de fato, não perca de vista o artesanato da autonomia, a sua e a do outro, servindo para este como uma espécie de ‘recurso dimensionador’ de sua própria medida e produtor de seu próprio sentido. Supor como possível esse jeito de fazer, é conceber o aconselhamento de uma maneira pedagógica e instigadora, sem indução. Modo terapêutico – não necessariamente no sentido clínico – mas no que tange a uma atitude de cultivo junto ao outro, em meio à abertura para tomadas de consciência e, consequentemente, para o amadurecimento das decisões. Nessa perspectiva, o conselho se afasta da noção de cega opinião, persuasão ou sugestão, e assume a noção de discernimento e exercício elaborativo de ponderação. Por este formato, o processo de consultoria pode passar a ser vivido como jornada oportuna de maturação do si mesmo, independentemente do tipo de conhecimento que esteja em jogo, justamente porque o outro é alguém e não uma coisa. O que se quer afirmar, enfim, é que entre os seres humanos tanto a subtração quanto a deferência são concebíveis como possibilidades de condução no trato, em qualquer forma de vínculo. Um processo de consultoria pode mesmo ser um destroçamento da liberdade de pensamento, reforçando a manutenção dos códigos que já se apresentam a priori no mundo, de modo manipulador e indutivo. Mas, por mais que possa parecer controverso, por se tratar de uma prática bem característica do sistema mercadológico hegemônico, tal atividade também pode ser oportunidade de abertura para que algo da ordem da transgressão aconteça, especialmente agora, pela incitação à capacidade crítica e ao desenquadramento dos moldes; exatamente porque o ‘ser’ do ‘humano’ está em jogo. Com isso, chega-se ao ponto central da temática. E para se dar a devida consistência que se deseja, é necessário avançar para uma análise que vá além do ôntico, como que se fez até aqui. Considera-se que os parágrafos 26 e 27 de Ser e tempo, de Martin Heidegger, possam dar acesso ao entendimento da questão por uma perspectiva ôntico-ontológica através das possibilidades positivas de ser-com nas relações, o que ocorre pela “substituição” ou pela “anteposição liberadora” de um pelo outro. Para tanto, o texto segue, agora, para um novo nível de abordagem.

         Primeiramente, é digno de nota que quando se coloca em discussão o “ser humano” em suas relações cabe uma breve contextualização[3] sobre a maneira heideggeriana de lidar originariamente com essa matéria na obra Ser e tempo. Dessa forma, vale lembrar que Heidegger é o filósofo que, em sua ontologia fundamental e em seus estudos sobre a questão do sentido do ser, suspende os conceitos clássicos estabelecidos. Portanto, as noções de “ser humano”, “pessoa”, “animal racional”, “sujeito” – inclusive de “sujeito moderno” etc – perdem sua predominância justamente porque para o filósofo a tradição, hegemonicamente, pensou o ‘ser’ a partir de caracteres essenciais, substantivando-o metafisicamente. O que significa dizer que a metafísica – visão característica do Ocidente que classifica o mundo em duas instâncias: o suprassensível e o mundo das aparências, sendo o primeiro o mundo instituidor da verdade absoluta e universal – é todo pensamento que se estrutura, segundo Heidegger, por meio do esquecimento do ser e da redução do ser a um aspecto do ente. Dessa maneira, identificando o ser como o conjunto de propriedades substancialmente dadas nos entes, a tradição transformou a multiplicidade dos sentidos do ser em um sentido apenas: o do ser simplesmente dado [Vorhandensein]. Mas com Heidegger, o debate filosófico volta-se para a polissemia do ser pela pesquisa da unidade na qual essa multiplicidade de sentidos aparece; essa unidade é o mundo – histórico e temporal. E como estudar tal polissemia do ‘ser’ nessa unidade? Por meio de um ente específico, o único capaz de abrir acesso ao ser: “esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo ser-aí [ou Dasein]”[4] (HEIDEGGER, 2002, p. 33). Ser ser-aí é ter todas as suas determinações de ser a partir do que é o seu; e esse é mundo. Como aponta Casanova: “(…) o mundo encerra em si uma ligação originária com o ser, porque mundo se confunde em última instância com a compreensão de ser. Com isto, nós nos deparamos com a tríade fundamental de Ser e tempo: ser, ser-aí e mundo” (2017, p. 22 [grifos nossos]). Deixadas de lado, portanto, as referências aprioristas, é possível tematizar o sentido do ser partindo do ser-aí, ente que, sendo, relaciona-se compreensivamente com o seu ser. Significa com isso desconstruir os modos como sempre se interpretou a questão do ser, ocupando-se em retirar os “entulhos”[5] (HEIDEGGER, 2002, p. 51) da tradição – que obscurecessem a visibilidade do sentido do ser -, e buscar “certidões de nascimento” (Id., ibid.) dos conceitos, a partir da analítica da própria existência do Dasein, não mais ‘homem’, ‘sujeito’, ‘pessoa’, ‘animal racional’ ou qualquer outra designação prévia que parta da pergunta absolutizadora ‘o que é?’.

         Afinal, o ser não é ‘algo’ possuidor de uma essência a priori, mas o seu fundamento é a ‘nadidade’, sendo o mundo “o horizonte sedimentado que transpassa e determina todos os comportamentos do ser-aí humano” (CASANOVA, 2017, p. 23). Ao mesmo tempo, o sentido histórico do ser assenta-se no “poder-ser” que o “ser-aí” é. Ou seja, o sentido do ser enquanto tal não se reduz aos sentidos mundanos de ser, pois são sempre possíveis novas significações históricas, uma vez que o poder-ser do ser-aí pode rearticular novos mundos. Tal entendimento é muito importante para a questão que se coloca neste texto, pois ao se pautar o problema da positividade do ser-com os outros é preciso partir do entendimento de que o ser-aí é onticamente ontológico, ou seja, tudo o que ele realiza de modo ôntico, o realiza ontologicamente. Em outros termos, o seu ser está em jogo em meio a qualquer comportamento que executa; o seu ser está em exercício por meio dos comportamentos que atualiza. Exatamente porque nada nele está dado é que ele se resulta da atualização de suas possibilidades, o que mostra que ele tem de ser, portanto, a cada vez (Cf. HEIDEGGER, 2002, p. 30-41)[6]. Ser-aí é ser-no-mundo. O que significa dizer que ser um ser-aí é se ver abruptamente jogado num campo historicamente determinado a partir do qual saem as orientações normativas que norteiam todos os seus comportamentos. Qualquer determinação do ser-aí é, ao mesmo tempo, uma determinação espaço-existencial. Mas isso não pode ser entendido que ser ser-no-mundo significa ‘estar dentro de um espaço’ mais amplo que o contém (o ser-aí não está no mundo como as cadeiras estão dentro da sala, nem como a sala está dentro de uma casa). Nas palavras de Duarte, ser-no-mundo “é ser-com os outros com os quais se coexiste em um mundo comum, cuja totalidade originária dos nexos de referência significativos já está sempre e de antemão aberta, isto é, compreendida por todos” (2002, v. digital.). Por isso, é preciso entender o mundo como um horizonte transcendente e transcendental, historicamente constituído, a partir do qual ‘algo’ aparece como ‘algo’ e onde todas as orientações já se dão para os comportamentos em geral. Ser Dasein é ser existência e existir [exsistere] é estar lançado fora, para fora. Eis a força da frase clássica heideggeriana: “A ‘essência’ do ser-aí está em sua existência[7] (2002, p. 77). Existir significa, portanto, não ter propriedades ontológicas simplesmente dadas, não ter quididade (um ‘quê’), mas modos de ser que a cada vez constituem quem se é. Justamente por não ter propriedades a priori, por não ter substratos ontológicos dados, é que o ser-aí é as possibilidades que exerce (Id., Cf. § 31).

         Dessa forma, Heidegger é enfático ao esclarecer que o modo de lida do ser-aí consigo, com os demais entes e com os conceitos da tradição vem sempre marcado por certo discurso do mundo histórico no qual ele exerce sua existência. Em outras palavras, a princípio, todo ser-aí é absorvido por seu horizonte histórico mundano, tendendo meramente a funcionalizar os significados por ele legados, condicionando seus modos de ser e suas relações com os entes em geral. Por causa disso, de início e na maioria das vezes, orienta-se por decisões ontológicas historicamente sedimentadas, homogeneizando a multiplicidade dos campos de sentidos de ser sem levar em conta a polissemia do ser, anteriormente assinalada. Como aponta Figal, não se pode esquecer que mundo é “contexto de familiaridade com as coisas” (2016, p. 62) e, na medida que tal contexto se mostra como conjunto de condições previamente estabelecidas, as possibilidades de ação do ser-aí sempre já estão, consequentemente, determinadas. Por isso, “ninguém inventa aquilo que é e faz de modo totalmente novo, mas se orienta sempre pelas possibilidades de ser e pelas ações que já foram realizadas por outros” (Id., p. 64). Precisamente porque é nada a priori, e inicialmente se orienta por sentidos e significados historicamente sedimentados, é que o ser-aí, na maior parte do tempo, é orientado pelo sentido da impessoalidade. Mas antes de seguir com a importância do sentido da impessoalidade, termo que aparece com destaque no parágrafo 27 e que logo adiante se dará aqui a devida ênfase por ser este um conceito chave para o desfecho do problema deste artigo, deve-se logo promover a entrada no parágrafo 26 de Ser e tempo.

         Nesse momento da obra, Heidegger se dedica a responder à pergunta: “quem é o ser-aí cotidiano?”. A resposta para tal indagação se encontra na análise do modo de ser em que o ser-aí existe, a princípio e na maior parte das vezes, a partir de sua relação com o mundo circundante mais próximo. Nesse sentido, a abordagem heideggeriana parte do exemplo sobre os insumos usados no universo do artesão, que deixam “vir ao seu encontro” toda uma rede de referências que caracteriza não apenas a sua lida manual, mas o seu ser-no-mundo com os outros: como é o caso daqueles para os quais a sua obra se destina e os fornecedores de quem obtém os seus materiais para a produção. Significa dizer que esse mundo circundante – recorte dentro do mundo histórico onde se lida com os utensílios – nunca aparece de forma isolada. Ao contrário, junto dos utensílios vêm ao seu encontro outros seres-aí, deixando evidente o fenômeno da coexistência e de que mundo é sempre mundo compartilhado [Mitwelt – mundo-com]. Para Heidegger, “o ser-em é ser-com os outros” (2002, p. 170.), tendo esta proposição um sentido ontológico-existencial. Isso significa que mesmo não tendo propriedades previamente dadas, o ser-aí tem existenciais ou modos de ser que lhes são estruturais e constitutivos entrelaçadamente. Dentre outras, ‘ser-no-mundo’ e ‘ser-com-o-outro’ são modos de ser estruturais do ser-aí. Assim, não há um ‘eu’ e depois um ‘outro’ (sujeitos fechados e pensantes) que estabelecem relação intersubjetiva, como defende grande parte do pensamento moderno, pois mesmo quando está só, fora da presença de outros, o ser-aí é determinado existencialmente pelo ‘ser-com’ no mundo. Segundo Duarte, o outro no mundo deixa, aqui, de ser pensado como ‘sujeito isolado’ ou ‘duplo de mim mesmo’. Para ele, Heidegger dá um passo além ao pensar “a possibilidade do reconhecimento ético do outro a partir do reconhecimento da condição ontológica de que já trazemos o outro em nós mesmos” (2002, v. digital). O que implica entender “que ser-com os outros não significa o somatório ou a mera justaposição de um Dasein ao lado de outro” (Id., ibid.). Esse ‘ser-com’ se dá no ser-aí de forma diferente do que ocorre com o manejo manual, em que os entes se organizam numa cadência tal capaz de viabilizar um campo de sentido projetado para que o ser-aí atinja uma finalidade ou realize algo. Esse é o modo de uso da circunvisão [Umsicht] que é guiada não por saberes teóricos ou regras enunciadas, mas por um informal ‘saber-como’ da lida ocupacional e, portanto, fala do mundo enquanto ocupação [Besorgen]. Mas a estrutura existencial do ‘ser-com’ abre para o ser-aí o mundo enquanto preocupação [Fürsorge] e é aqui que os outros seres-aí aparecerem, mesmo quando isso se dá por modos deficientes: seja contra, seja sem, seja não sentindo-se tocado pelo outro… ainda assim, são modos possíveis de ‘preocupação’.

         Portanto, distintamente do mundo do ‘ser-para’ enquanto ‘ocupação’, no mundo do ‘ser-com’ o modo de descoberta da ‘preocupação’ é guiada pelo que Heidegger chama de consideração ou tolerância. Tais termos não são colocados em Ser e tempo com qualquer intuito moral de estima ou condescendência, mas sempre na perspectiva fenomenológico-existencial de ‘ser-com-o-outro’. “Na analítica ontológica da existência, o outro deixa de ser apreendido como um “duplo do si-mesmo” [eine Dublette des Selbst] para ser concebido como aquele “com” o qual já coexisto no mundo comum das ocupações e preocupações cotidianas, segundo o modo de ser da abertura que compreende o ser” (DUARTE, 2002, v. digital). Nessa acepção, é possível observar que há diferentes modos desse ‘ser-com’ acontecer. Em seu sentido existenciário – a maneira como existe e como se comporta diante dos entes – pode ser que o ser-aí atue de modo negativo fazendo desaparecer o outro como ser-aí (regimes totalitaristas deixam isso à mostra). Nesse caso, o ‘ser-com’ está se dando mas de maneira fenomenologicamente negativa, típico de relações configuradas pela indiferença, em que o outro é colocado na configuração de uso, não tornando-se visível como ser-aí. Diferentemente da situação anterior, quando o ser-aí surge e visualiza o outro no horizonte de aparição dos vínculos como outro ser-aí, o que atua é a positividade do ‘ser-com’. Vale reforçar que é considerada como ‘positividade’ por Heidegger porque, junto com a ocupação [Besorgen], nesse caso se estabelece uma relação de cuidado/cura [Sorge] e preocupação [Fürsorge], entendidos – como já sinalizado anteriormente – não a partir da moral do senso comum, mas como estruturas existenciais do ser-aí. Como destaca Inwood, esses conceitos são utilizados “no sentido de que Sorge pertence ao próprio Dasein, Besorgen às suas atividades no mundo, e Fürsorge ao seu ser-com-os-outros” (2002, p. 26). Significa dizer que sendo um existente o Dasein é ser-no-mundo, junto com os utensílios e com os outros Daseins, numa lida comum, exercendo-se como poder-ser a todo instante. Somente nessa relação com os entes utensiliares e com os outros seres-aí é que o Dasein pode ser quem ele é, a cada vez. E no que tange a esta relação com os outros dando-se em positividade, Heidegger apresenta, assim, no parágrafo 26, duas possibilidades de ‘ser-com’:

No tocante aos seus modos positivos, a preocupação possui duas possibilidades extremas. Ela pode, por assim dizer, retirar o “cuidado” do outro e tomar-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o. Essa preocupação assume a ocupação que outro deve realizar. Este é deslocado de sua posição, retraindo-se, para posteriormente assumir a ocupação como algo disponível e já pronto ou então se dispensar totalmente dela. Nessa preocupação, o outro pode tornar-se dependente e dominado mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto para o dominado. Essa preocupação substitutiva, que retira do outro o “cuidado”, determina a convivência recíproca em larga escala e, na maior parte das vezes, diz respeito à ocupação do manual.

Em contrapartida, subsiste ainda a possibilidade de uma preocupação que não tanto substitui o outro, mas que se lhe antepõe em sua possibilidade existenciária de ser, não para lhe retirar o “cuidado” e sim para devolvê-lo como tal. Essa preocupação que, em sua essência, diz respeito à cura propriamente dita, ou seja, à existência do outro e não a uma coisa de que se ocupa, ajuda o outro a tornar-se, em sua cura, transparente a si mesmo e livre para ela. (2002, p. 173-174. Grifos nossos)

         Tem-se, portanto, a convivência cotidiana entre seres-aí que assim se reconhecem pelas vias dessas possibilidades da preocupação positiva: a substituição de um lado, e a anteposição liberadora, de outro. A primeira se apresenta de modo invasivo, em que o outro, ao perder a responsabilidade por seu ‘cuidado’, é subtraído de sua própria ocupação, tornando-se sujeitado e dependente daquele que o substitui e que por ele responde. Segundo Cabral, na substituição “o trabalho ou o esforço do outro é anulado, já que o Dasein faz ou realiza o que ao outro compete. Por isso, o outro assume a ocupação como algo já feito, dado, sem ter feito ou deixado vir à luz o que pelo Dasein foi realizado” (2009, p. 82). Na segunda, entretanto, o que se passa é uma relação emancipadora, onde o outro não é confiscado de seu lugar de ‘cuidado’ e não lhe são raptadas a liberdade e a transparência de seu si mesmo, imbricadas em suas ocupações, justamente porque o ser-aí existe na relação como cuidado para si mesmo. “Nesta, o outro não é anulado em sua ocupação, pelo contrário, o Dasein com ele se relaciona de tal modo que o auxilia a tornar-se livre para assumir sua cura, seu ser” (Id., p. 83). Diante da explicação de ambas as possibilidades, cabe relembrar o problema aqui apresentado, considerando-o, agora, por um viés ôntico-ontológico: o que se coloca em jogo na relação das atividades de consultoria, à luz dessa reflexão, nos dias atuais? No pior das hipóteses, é possível que o outro apareça na posição de uma coisa ou de mero objeto de uso e ganho; que o consultor aja até mesmo contra o outro, recomendando caminhos errôneos pela simples obtenção de vantagens materiais, como se admitiu de início, no modo negativo de ser-com, posto ainda anteriormente às possibilidades positivas. Nesse caso, a indiferença impede a aparição desse outro como ser-aí, logo desvigora-se o ‘ser-com’ e a ‘preocupação’, estabelecendo-se uma relação fenomenologicamente negativa e subtraindo-se radicalmente o outro-Dasein a status de utensílio ou ente simplesmente dado (em termos ônticos, reduzindo-o a ‘mercadoria’).

         Contudo, neste texto procurou-se dar ênfase numa forma de se fazer tais atividades enxergando o outro como ser-aí que é; e é a partir desta perspectiva que as possibilidades positivas aparecem. Entretanto, o que Heidegger nos mostra, no parágrafo 26, é que mesmo por vias positivas ainda há condição de se fazer desse outro um ser-aí dependente e desnutrido de seu próprio cuidado. Portanto, a substituição como modo de ‘ser-com’ e de ‘preocupação’ na consultoria permanece numa via de invasão, dominação, obstrução e retraimento. Por esse viés, o consultor influencia de forma contundente o que tem que ser feito, ocupando-se da ocupação que deveria ser daquele que pede consulta: sua vida, sua carreira, sua empresa, seu dilema, sua liberdade e responsabilidade de escolha. Embora já tenha se distanciado da negatividade de olhar para o outro – deixando de só enxergá-lo como lucro ou peça de interesses unilaterais – o consultor o concebe como um alguém que precisa fazer o que está dito a priori: vire-se, evolua, reinvente-se na crise, seja vencedor! É o grito ‘Yes, you can’ da sociedade do desempenho, impondo suas exigências, como sinaliza Byung-Chul Han. É preciso admitir que, mesmo entre consultores considerados sérios e éticos, é comum que isso aconteça no cotidiano dessas atividades. O profissional entende que está cumprindo o seu papel quando consegue reforçar as consignas do mercado e o cliente sente-se bem atendido pelo consultor se este o levou, com seus conselhos, a atingir os resultados que o mercado previamente já havia designado. E por quê? Hora de voltar a Heidegger com sua reflexão sobre ‘quem é o ser-aí cotidiano’, resgatar um conceito deixado suspenso na página 10, dando a este evidência para se entender o motivo de a substituição ser a possibilidade positiva mais encontrada na dinâmica da relação consultor-cliente.

         Trata-se do sentido da impessoalidade, que aparece no parágrafo 27 de Ser e tempo. Heidegger enfatiza que, em sua convivência cotidiana, o ser-aí enquanto ser-com está em constante relação de nivelamento com os outros seres-aí, buscando acompanhá-los, estar com eles em pé de igualdade ou até mesmo sobrepujá-los. Isso se dá, como se apontou anteriormente, porque o modo de lida do ser-aí consigo e com os demais entes vem sempre marcado por certo discurso do mundo histórico no qual ele exerce sua existência; ou seja, a princípio, todo ser-aí é absorvido e tutelado por seu horizonte mundano, condicionando seus modos de ser e suas relações com os entes em geral. Por isso, nas palavras de Heidegger, “o domínio dos outros, sem surpresa, é assumido sem que o ser-aí, enquanto ser-com, disso se dê conta”[8] (2002, p. 179). Esses “outros” são, na verdade, todos os seres-aí que compõem sua convivência cotidiana e que fazem com que o ser-aí dissolva o seu modo de ser no modo de ser de um ‘quem’ neutro. Para Heidegger, trata-se do impessoal [das Man]. Significa dizer que o mundo desonera o ser-aí fazendo com que este se divirta como ‘todo mundo’ se diverte, leia como ‘todo mundo’ lê, julgue como ‘todo mundo’ julga, se relacione como ‘todo mundo’ se relaciona, … Ou seja, o ser-aí se conduz no dia a dia impessoalmente, prescrevendo, assim, o modo de ser da cotidianidade ou da impropriedade mundana. ‘Conduzir-se impessoalmente’ vai muito além de simplesmente se comportar a partir do senso comum (que se vincula a um conjunto de convicções e crenças). Trata-se de, estando “absorto em seus afazeres em meio ao predomínio da “interpretação pública” de tudo o que é, os outros tomarem ao Dasein o próprio ser, retirando-lhe o “peso” da responsabilidade de existir” (DUARTE, 2002, v. digital). O impessoal é, na verdade, perder de vista a condição de responder pelo ser-aí que se é, como diz Heidegger:

(…) o impessoal retira a responsabilidade de cada ser-aí. O impessoal pode, por assim dizer, permitir-se que se apoie impessoalmente nele. Pode assumir tudo com a maior facilidade e responder por tudo, já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma coisa. O impessoal sempre “foi” quem… e, no entanto, pode-se dizer que não foi “ninguém”. Na cotidianidade do ser-aí, a maioria das coisas é feita por alguém de quem se deve dizer que não é ninguém. (2002, p. 180 [“presença” por “ser-aí”])

         Ao assumir e tomar tudo para si, uma vez que esse ‘quem’ passa de ‘todo mundo’ a ser ‘ninguém’, o impessoal isenta o ser-aí de responder por si, facilitando, superficializando e dispensando-o de ser. É exatamente assim que a substituição se apresenta; a impessoalidade se dá como relação substitutiva: “não sou eu que decido para que serve um martelo ou que decido usar roupas em público. Nem alguém em particular decide tudo isso. Ninguém o faz. É apenas o que se pensa e se faz, o que o impessoal pensa e faz” (INWOOD, 2002, p. 97 [grifos nossos]).  Por isso que no dia a dia da consultoria, mesmo numa relação positiva com o cliente, ao se tratar de substituição, invasivamente tudo já está circunscrito pelo discurso característico do mundo que é o nosso. Lembrando novamente as palavras de Cabral, “o trabalho ou o esforço do outro é anulado, já que o Dasein faz ou realiza o que ao outro compete” (2009, p. 82). Nesse sentido, o consultor é mercadoria que se vende para reproduzir em forma de conselho os ditames do capital; o cliente, por sua vez, é aquele que contrata o consultor para ajudá-lo a se transformar também em mercadoria. Assim, o consultor é a voz do status quo que age substitutivamente e o cliente é o ente sujeitado que como ‘todo mundo’ segue o mercado, cotidianamente. Como diz Heidegger, nesse círculo enfim, “todo mundo é outro e ninguém é si próprio” (2002, p. 181). Mas vale sempre lembrar que a visão heideggeriana não tem cunho moral, portanto, o impessoal não é bom, nem mau, apenas a designação do mundo comum, que faz com que o si-próprio do ser-aí e o si-próprio do outro se diluam na impropriedade. Como afirma Duarte, Heidegger não quis confundir esse “ninguém” com um “nada negativo”, mas opostamente mostrar que, no cotidiano, “o existente se interpreta o mais das vezes como um “ens realissimum“, como o “sujeito mais real”; pleno de sentido e realidade (2002, v. digital). Por isso que “de início, o ser-aí é impessoal e, na maior parte das vezes, assim permanece” (HEIDEGGER, 2002, p. 182) [9].

         Quando o consultor realiza aconselhamento com base no impessoal, que já dita: “você pode”, “lute pelos seus sonhos”, “você deve se reinventar” …, está impedindo a visibilidade de um projeto de sentido em que o solo seja o poder-ser, o risco e o perigo de ser si mesmo. Um projeto de sentido que tenha um fundamento na não fixidez, que deixe vigorar o cuidado próprio de si, a vigência de responder pelo poder-ser nas possibilidades existenciárias de ser. Se a consultoria assim atuasse, o cliente, existencialmente, poderia colocar em xeque a nadidade de onde surgem até mesmo as noções de desempenho, sucesso, metas… e abrir-se para indagar: “Faz sentido pra mim ter sonho ou me reinventar? Por que bater tanta meta? E até onde, para existir, preciso provar que posso?”.  Problematizações como essas não acontecem quando se pressupõe um horizonte existencial de sentido já deliberado para ‘todo mundo’. Daí a importância de se pensar na possibilidade de ‘ser-com’ pelo modo da anteposição liberadora uma vez que esta se constitui por uma relação na qual o ser-aí ajuda o outro a se tornar transparente a si mesmo, liberando-o para ser livremente o seu cuidado num projeto de sentido autenticamente seu, que brote do solo de seu poder-ser e potencialize o fazer que é o dele. Mas é preciso admitir que este último modo de ‘ser-com’ não é simples de se conquistar. Daí Heidegger deixar claro que o quem do ser-aí cotidiano da modulação positiva é, de princípio impessoal – logo, ‘substituição’ – e, na maioria das vezes, assim permanece. “O próprio do ser-aí cotidiano é o próprio-impessoal que distinguimos do si mesmo em sua impropriedade, ou seja, do si mesmo apreendido como próprio” (Id., ibid.). Nesse próprio-impessoal ou nesse sujeito existencial do cotidiano, só é possível encontrar dispersão, característica do mundo familiar da ocupação. Com isso, todos passam a ser substituíveis; todos passam a ser, no quem do dia a dia, o neutro ou a “gente[das Man]: que substitui e é substituído. Sem perceber, “todo Dasein envolvido na lida cotidiana das ocupações preocupadas já está sempre entregue à “tutela”, ao “arbítrio”, ao “domínio”, ao “poder” e à “ditadura” dos outros, segundo os termos do § 27” (DUARTE, 2002, v. digital).

         Isso porque, como dito antes, o impessoal passa por tudo o que é estrutura sintática, semântica, gramatical e relacional, uma vez que se apresenta como o conjunto de determinações significativas sedimentadas que orientam os comportamentos em geral. De tal modo que quando uma coisa aparece como sendo tem-se da aparição, imediatamente, uma orientação significativa que surge como uma medida condutora do comportamento. Cotidianamente, os projetos e os modos de uso, são previamente regulados, dados e feitos pelos outros em meio a campos de sentido já estratificados. Por isso, o que um faz outros podem fazer e a substituição é generalizada; a gente é como se é, a gente pensa como se pensa, veste como se veste, anda como se anda, fala como se fala. Todos os alguéns tornam-se ninguéns, sem singularidade. No modelo de consultoria substitutivo comandado pelo impessoal não se permite que o cliente reivindique o seu ‘cuidado’, apenas se joga com repetição e encurtamento a partir do que se impõe como normatização, sem abertura autêntica para um debate sobre o projeto de sentido com seu caráter de possibilidade. Não há desconstrução nem destruição de nada e as capas de preconceito só ganham mais camadas. Nesse sentido, não se “larga o regaço”, nem se “semeia tempestade”, como conclama Buarque. Ao contrário, na maior parte das vezes, reproduz-se, apenas, os mandatos vigentes, colaborando-se, assim, com a ‘queima de si’ do tal ‘sujeito do desempenho’, denunciada por Byung-Chul Han. Por outro lado, ainda que mais raro, quando o modo é antepositor, a relação facilita e potencializa o outro a cuidar de si a partir do lugar que é o dele, sem coerção, mas com interpelação. O conselho pode ser dado, desde que o consultor trabalhe para que o cliente tenha a chance de ouvir, tensionar e dialogar com o seu si mesmo, apropriando-se do que está sendo posto como uma possibilidade sua que ele reconhece como projeto de sentido proativo para o seu ser-no-mundo. Este último modo desafia o quem cotidiano envolvendo, inclusive, temas heideggerianos que não serão desenvolvidos neste artigo, como o conceito de ‘propriedade’ e ‘singularidade’.

         Mas vale dizer que mesmo sendo a anteposição liberadora a mais infrequente, ela se faz possibilidade; ela se faz tarefa. Tarefa de se pôr em indagação o fazer de nossas atividades consultivas. Seja no âmbito do plural, que não pode fugir das perguntas ético-políticas antes levantadas, como: Qual o valor da vida? Que preço teremos que pagar pela manutenção desse fascismo neoliberal em prol da economia? Que vidas podem ser ceifadas no giro da produção? etc. Seja no âmbito da abordagem individual capaz de sugerir orientações, protocolos e medidas, especialmente no momento de crise. Na verdade, a partir dessas ponderações, talvez seja legítimo dizer que o que está em jogo no âmbito do aconselhamento das práticas de consultoria não é o conselho, propriamente dito, mas a resposta ao ‘quem cada um se torna[10] ao aconselhar e ser aconselhado?’, enquanto pessoa e cidadão do mundo. Se o ser-com-o-outro se fizer caminho, ainda que arriscado, para cada um tornar-se existencialmente autônomo, o conselho é válido. Porque nesse caso, com base na anteposição liberadora, mesmo em meio a um processo de aconselhamento, o outro não é anulado mas levado a se emancipar para ser livre em seu cuidado, em seu ser. Para Cabral, “esta é a plenitude da solicitude. Quando solícito, o Dasein facilita a existência do outro, já que o deixa ou o auxilia a assumir o seu poder-ser próprio constitutivo, o que o faz vir-a-ser quem ele é” (2009, p. 83).

         Conselho por conselho, o que conta é essa solicitude com o outro, especialmente nesse momento histórico tão decisivo. Momento em que podemos negar a positividade da psicopolítica esfuziante do capital, denunciada por Han, e abraçar a positividade de ser-com os outros, enquanto anteposição liberadora, explicitada por Heidegger. Esse poderia ser nosso conselho aqui. E por falar em conselhos, melhor mesmo é terminar com outra recomendação do grande poeta. Na virada de 1972 para 1973, Chico Buarque lançou mais uma canção, esta irônica, irreverente e debochada que fazia parte da peça “Calabar ou Um elogio à traição”, em parceria com Ruy Guerra. A censura não gostou já que, segundo o próprio Chico, a música era um emblema resumido da moral duvidosa da História, por isso a letra dizia uma coisa e comunicava o seu oposto. Com isso, a canção foi vetada e gravada em versão apenas orquestral, sem letra, aguardando até 1980 para ser integralmente divulgada, na voz de Nara Leão, com algumas adaptações. Essa canção se chama Vence na vida quem diz sim e a versão abaixo é a original censurada:

         Eis aí o conselho às avessas, como arma de resistência, transgressão e ato político… O conselho que usa o ‘sim’ para apontar o ‘não’… O conselho que tramita no sistema para contestá-lo… A crise hoje é pandêmica, feita por um vírus, amanhã poderá ser outra. A ditadura pode ser militar ou de mercado, não interessa. A letra da canção de Chico serve para toda forma de ameaça ou violência que destrói, que cala, que coisifica e que assassina liberdades no campo do poder-ser. O que interessa, por fim e portanto, é resistir. Essa também pode ser uma hipótese para as atividades de consultoria no contemporâneo. Uma verve mais ética, mais crítica e mais estética. Por que não? Em tempos sombrios, que se tenta fazer até mesmo com que o ser-aí não seja mais o seu , mas sim um vazio desarticulado do seu próprio espaço-existencial, vale aprender com a tradição e tensionar o presente com transgressão, em prol de algum futuro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CABRAL, Alexandre. Heidegger e a Destruição da Ética. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Mauad Editora, 2009.

CASANOVA, Marco. Mundo e Historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Via Verita, 2017.

DUARTE, André. Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo. Revista Natureza Humana. Versão impressa ISSN 1517-2430. São Paulo. v.4. n.1. jun 2002. In: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302002000100005. Consultado em 10.11.19.

FIGAL, Günter. Introdução a Martin Heidegger. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Editora Via Verita, 2016.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Âyiné. Nr.1. aut-aut, 2018.

_______________. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. 2015.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte 1. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 12 Ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002 [1927].

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa Buarque de Holanda; revisão técnica Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2002.

LABORATÓRIO DA CONSULTORIA. O que é Consultoria? In: http://laboratoriodaconsultoria.com.br. Acesso em 19.10.2019.

PUTTI, Alexandre. Entrevista com Eduardo Moreira. In: Revista Carta Capital, 10/05/2019. Arquivo Digital. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/economia/mercado-nao-seria-a-solucao-ele-e-o-problema-diz-eduardo-moreira/. Acesso em 28.11.2019.

[1] Referência feita por Byung-Chul Han ao legado deixado por Michel Foucault. A biopolítica, uma das facetas que caracterizam o biopoder, desponta em meados do século XVIII, comprometendo-se com processos de intervenção e controles reguladores, por meio dos quais mecanismos disciplinadores docilizam o indivíduo e regem a população. A biopolítica instala uma força de governança social que se mostra com um certo ‘tu deves’, pois é preciso assimilar a ‘norma’. Byung-Chul Han nota o despontar de outro tipo de política que não mexe mais com a norma e seus elementos de negatividade. Tipo este que Foucault não conheceu, uma vez que nos deixou no ano 1984, não experimentando as sociedades de capitalismo neoliberal. O que passa a estar em jogo, hegemonicamente, nas sociedades atuais se caracteriza pela psicopolítica. A ‘negatividade do não’ transfigura-se na ‘positividade do sim’, reposicionando o ‘tu deves’ e deixando claro que se tu podes, tu deves… deves poder. (Cf. HAN, 2018, 33-36).

[2] A expressão remete-se ao filme “O show de Truman”, do Diretor Peter Weir, de 1998. Truman Burbank (Jim Carrey) é um pacato vendedor de seguros que leva uma vida simples com sua esposa Meryl Burbank (Laura Linney), mas que passa a estranhar sua cidade, seus supostos amigos e até sua mulher. Ao conhecer Lauren (Natascha McElhone), fica intrigado e acaba descobrindo que toda sua vida foi monitorada por câmeras e transmitida em rede nacional. Sinopse do site Adoro Cinema. In: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-18671/. Consultado em 28/11/2019.

[3] A contextualização feita neste artigo tem por base, especialmente, as anotações de aulas dos Professores Marco Casanova e Alexandre Cabral sobre a obra Ser e tempo, de Martin Heidegger em várias ocasiões de aulas e palestras dadas por estes sobre o tema. Tal contextualização também se concentra de maneira prioritária nos primeiros parágrafos da obra, com destaque para os § 2, 3, 4, 6 e 9 de Ser e tempo.

[4] § 2 de Ser e tempo. Tradução modificada [“presença” por “ser-aí”/”Dasein”].

[5] § 6 de Ser e tempo.

[6] § 2, 3,4 de Ser e tempo.

[7] § 9 de Ser e Tempo. Tradução modificada [“presença” por “ser-aí”].

[8] Tradução modificada [“presença” por “ser-aí”].

[9] Tradução modificada [“presença” por “ser-aí”].

[10] Essa reflexão faz referência a uma indagação que o Professor Alexandre Cabral sempre levanta em suas aulas.